sábado, 26 de março de 2022

 A DAMA E O VAGABUNDO DE PLANALTINA- "Ei, moço, moço! Quer 'namorar' comigo?"

Reflexões para além de surtos psicóticos e abusos sexuais.


Nesta semana um fato inusitado envolvendo uma bela mulher casada e um morador em situação de rua chamou a atenção de todas as mídias. Eis que uma missionária benfeitora de uma Igreja Evangélica, envolvida em projetos de assistência e doações a moradores em situação de rua decidiu por doar a própria carne em comunhão a um desassistido. 


O momento dadivoso teria sumido na poeira da história se o seu marido, um portentoso personal trainer, não houvesse flagrado o ato em plena sagração já que a moça afirmou que naquele instante da comunhão, digno da hóstia de seu propósito, havia visto a imagem de Deus. Em estado de choque e descontrole diante da cena (ou milagre?) que testemunhara, o marido assomou-se para dentro do carro da esposa onde tudo acontecia, arrancou o morador em situação de rua de dentro do automóvel e o espancou furiosamente. Sendo tudo devidamente filmado pelas câmeras onipresentes na atual sociedade da vigilância. 


O evento epifânico levou o marido da missionária e os amantes de ocasião a redutos-limite da transgressão: todos, para as  barras da polícia judiciária, a religiosa, para um leito de hospital psiquiátrico.


Ao refletir sobre o tema, pude, mais uma vez, constatar o quanto o sexo derruba as barreiras das desigualdades sociais e econômicas, sendo essa moça, antes de tudo, um arauto na luta pela Igualdade em todos os níveis e instâncias. E o quanto essa espécie de prática erótica entre pessoas antípodas   está longe de ser excepcional e, muito pelo contrário, é comum e corriqueira, quando a mulher está em situação de vulnerabilidade e, até mesmo, precariedade, e o homem ocupa uma posição social mais favorecida, ainda que esses encontros geralmente se dêem em virtude de um exercício de poder por parte dos homens. Esse fato envolvendo uma bela mulher branca das classes médias e um homem em estado de mendicância, uma aberração que tão somente poderia justificar-se como um estupro por parte do morador de rua ou um surto psicótico por parte da moça benfeitora, quando a mulher e o homem trocam de lugar,  é estruturante nas relações de gênero de nossa sociedade, ao menos, a brasileira, desde os seus primórdios. 


Ou não era corrente os assaltos dos homens brancos e proprietários sobre mulheres escravizadas, e, depois, sobre toda e qualquer mulher em situação de subalternização?


Enquanto às mulheres sempre coube se relacionarem com homens de seu mesmo estrato social ou superior, sendo inimaginável uma mulher se unir amorosamente ou sexualmente com um homem de situação econômica inferior, ainda mais, muitíssimo inferior, aos homens sempre foi permitido e até mesmo incentivado esse trânsito a transpor todas as barreiras de raça e de classe econômica e social através da carne. 


Da perda da virgindade com a empregada da casa familiar aos costumeiros programas com prostitutas quando já casados. E não apenas com prostitutas de melhor trato, as garotas de programa, mas com aquelas que são moradoras em situação de rua. No caso da cidade do Recife, também, com aquelas que são moradoras "em situação de mangue" e que servem aos homens cerca de vinte vezes por dia a fim de se servirem de um único prato de comida, temperado a drogas, ao final de seus "expedientes".


No meu caminho diário para a Universidade, à luz do sol, estou cansada de ver mulheres em condição de rua, em andrajos, aos farrapos, adentrarem os carros de homens bem alimentados e corados,  muitos,  provavelmente, casados, para fins de comunhão carnal. E nunca ouvi falar que, para fazê-lo, esses homens estariam tendo um surto psicótico.


E aqui chego ao ponto que gostaria de acentuar nessa reflexão: O desejo feminino. 


Sim. As mulheres, a despeito de todos os grilhões e condicionamentos sexuais, desejam. E muito. E são capazes de desejarem a despeito de raça, credo e condição financeira e social, diversamente do que "quer" a cultura. Do que pretende a cultura machista e patriarcal. E não cessam de desejar por serem casadas, assim como os homens. E não desejam outros homens por seus homens não lhes satisfazerem, assim como os homens. E tomam as rédeas na direção de seus desejos, assim como os homens.


E, no mais das vezes, desejam, não para exercício de poder e subjugação, mas por simples dádiva e prazer, o que pode ter acontecido com a Dama e o Vagabundo de Planaltina. Diversamente dos homens...



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