segunda-feira, 21 de março de 2016

      "Ele me ofende, mas é bom pai e paga as contas" -
Do perigo de levarmos uma combatida postura feminina no âmbito privado para o âmbito público.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;

(...) 



Irmanada a todas as mulheres, independentemente de ideologias seguidas, senti-me profundamente ofendida, tanto com o tratamento dado pelo ex-presidente Lula a suas correligionárias, alcunhando-as de  “feministas de grelo duro” em uma gravação telefônica objeto de investigação pela Polícia Federal, quanto ao comentário jocoso feito pelo mesmo de que a Clara Ant, diretora do Instituto Lula, ao estar dormindo sozinha e receber cinco homens em seu recinto, sem saber que eram da Polícia Federal, teria pensado que era “um presente de Deus”. Os dois casos colocam as mulheres como as milenares bruxas medievais sexualmente insaciáveis, já que vivem “de grelo duro” e à espera de “machos” em suas camas como que da realização de um milagre. Mutatis mutandis, nos dois fatos as mulheres foram chamadas subliminarmente de “Putas”, lembrando que nem as putas podem ser chamadas de putas, pois se trata de crime de difamação, punido pelo Código Penal. Logo, tal xingamento, mesmo quando dirigido a uma prostituta de profissão, constitui crime contra a honra, pois a prostituta é um ser humano a quem se deve respeito. 
Foi dito que a expressão era comum no Nordeste. Sou do Nordeste e vivo no Nordeste e nunca a havia escutado. Consultei mulheres mais velhas de cidades do interior e elas me disseram que o termo hoje em desuso sempre foi de baixo calão e se dirige para designar mulheres lésbicas, ou seja, mais um aviltamento às mulheres em razão de sua orientação sexual. Mais um clichê de que as feministas, necessariamente, são mulheres  lésbicas ou mal amadas. Com todo respeito aos dois casos, mas sabemos que para o macho perverso, apenas em ambas as hipóteses justificar-se-ia a luta das mulheres por seus direitos, pela sua cidadania.
Um grande avanço durante o Governo Lula foi a entrada em vigência da Lei Maria da Penha, mas lembremo-nos que a Lei só foi promulgada no Brasil em razão de uma recomendação internacional, na qual constava que a não promulgação da Lei levaria à aplicação de graves sanções ao país. 
Respeito todas as orientações políticas, mas lembro às minhas irmãs mulheres que não há possibilidade de mitigação da gravidade dos atos de quem nos desrespeita, não importa quem seja, seja o presidente em quem votamos, seja nossos pais, nossos irmãos ou nossos companheiros, mesmo nos casos de mulheres que são por eles sustentadas economicamente. Essa é uma luta que temos tido, e muito, em relação às vítimas de violência doméstica, que não denunciam as ofensas que sofrem, quer físicas ou quer psicológicas, porque afinal de contas, "ele é um bom pai e paga as contas". 
Minimizarmos a gravidade das falas do ex-Presidente é nos colocarmos na mesma posição dessas mulheres em relação aos seus companheiros e familiares abusadores. 

O psicanalista francês Jacques Lacan afirmou que a mulher não existia. Cobrou-se uma explicação a Lacan por tamanha absurdidade, ao que ele salientou que "a mulher não existe na linguagem". Ou seja, compreendemos e concordamos que é a linguagem que inaugura o ser. Assim como, o modo como o ser é falado nessa linguagem revela e perpetua a cultura como este é, socialmente, tratado. No caso de uma cultura de violência contra a mulher, a linguagem contribui para endossar e perpetuar essa violência.
Que o ofensor, ao menos, se retrate, uma vez que as palavras dadas ao tratamento ao feminino se tornaram públicas.
Não pagaremos quaisquer políticas, mesmo as que tenham sido boas, e nem  eventuais vantagens materiais com o preço de nossa já tão historicamente aviltada e massacrada dignidade.

É o mínimo de generosidade que podemos ter com nós mesmas e com as nossas filhas do amanhã.
Andrea Almeida Campos
Advogada, Professora de Direito e Conselheira da Cátedra UNESCO/Dom Hélder Câmara de Direitos Humanos.

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