“Quod non est in actis non est in mundo” - Das Regras de Experiência
Comum
Andrea
Almeida Campos. Advogada e Professora de Direito Civil na
Universidade Católica
de Pernambuco.
“Quod non est in actis non est in
mundo”, o que não está no Processo não está no mundo, nos ensina o brocardo
latino que empresta segurança às relações processuais e à aplicação do Direito,
mitigando a possibilidade de decisões arbitrárias e formatando a
discricionariedade judicial aos limites do processo. O juiz não pode se negar a julgar (non
liquet), tendo o dever de dar uma resposta jurídica às demandas trazidas pelos
seus jurisdicionados, estando essa sob o império da lei. Mas, e quando não
houver lei a ser aplicada ao caso concreto ou quando as provas são indiciárias,
mas não conclusivas? Em vários países ocidentais, a solução tem sido a
aplicação das denominadas “regras de experiênia comum”. Regras, que entendemos, devam ser deixadas a
látego diante da insuficiência de provas produzidas, sob prejuízo de termos
feridos a ferro e faca os princípios da dignidade humana e do devido processo
legal. Senão, vejamos. Inferimos que o ainda vigente Código de Processo Civil
Brasileiro em seu art. 335 adota o sistema da livre apreciação de provas, preconizando
que as leis da razão e da experiência devam ser observadas, IN VERBIS:
Art. 335 Em falta de normas jurídicas particulares, o juiz aplicará as
regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e ainda as regras
da experiência técnica, ressalvado quanto a esta, o exame pericial.
Ainda sobre a apreciação das regras
de experiência comum, mormente no que tange à produção de provas, podemos
observar a liberdade do juiz quanto a essa observância e o endosso que lhe empresta
a lei quanto aos seus poderes instrutórios na condução do procedimento
probatório e na apreciação da prova no art. 852-D, do mesmo diploma legal sub
oculi, também IN VERBIS:
Art. 852-D. O juiz dirigirá o processo com liberdade para determinar as
provas a serem produzidas, considerado o ônus probatório de cada litigante,
podendo limitar ou excluir as que considerar excessivas, impertinentes ou
protelatórias, bem como para apreciá-las e
dar especial valor as regras de experiência comum ou técnica. (Grifo nosso)
E o que a teoria jurídica compreende
por regras de experiência comum? Consultemos o jurista Friedrick Stein em seu
“El Conocimiento privado del juez” :
Son definiciones o juicios hipotéticos de contenido general, desligados
de los hechos concretos que se juzgam en el proceso, procedentes de la
experiencia, pero independientes de los casos particulares de cuya observación
se han inducido y que, por encima de esos caso, pretendem tener validez para
otros nuevos (Stein, 1990).
As regras de experiência comum,
portanto, integrariam o Princípio de Persuasão Racional que engendra axiomaticamente
o sistema jurídico quanto à apreciação de provas. O problema que forjamos
é: A que racionalidade se referem as
regras da experiência comum e em que consiste esta racionalidade? O racional,
em tela, seria a observação das experiências reiteradas como determinantes de
decisões pré-concebidas diante do não esgotamento da produção probatória? O
racional seriam os cálculos matemáticos de probabilidades, afetando a realidade
humana, e mais ainda, a produção da verdade? Até que ponto podemos vincular a
produção da verdade às contingências reiteradas no tempo e no espaço? Mais
ainda, vincular a produção da verdade à experiência reiterada em prejuízo da
experiência singularizada quando o que se está em jogo nesse jogo é a liberdade
e a dignidade humanas? Tomo emprestado o exemplo que integra as ilações do
Professor processualista e Juiz Federal Eduardo Costa sobre o assunto: “Um
barco parte do norte da África e atravessa o Mediterrâneo rumo ao mar
territorial espanhol, nele viaja um homem em torno dos 30 anos de idade e de
etnia árabe que desembarca num porto conhecido por receber traficantes de
drogas provenientes da mesma região na qual embarcou o viajante. Esses traficantes,
já condenados pelo crime de tráfico, são, em sua maioria, árabes e têm em torno
de 30 anos. O viajante é interceptado, mas com ele não se encontra a droga na
quantidade necessária para caracterizar-se o crime de tráfico. Havia com ele
tão somente uma mínima quantidade de haxixe para o que ele disse ser destinado
a “consumo próprio”. Inicia-se a
persecução penal. O juiz “racionalmente”, baseado nas “regras de experiência
comum”, deduz que o réu deva ter jogada a droga às águas mediterrâneas durante
a travessia. O viajante, já preso, é
sentenciado e condenado por tráfico de entorpecentes...”. Estando sob a esfera
da processualística civil, poderíamos inferir baseados em regras de experiência
comum, que um determinado devedor fraudou os seu credores e condená-lo pela
fraude porque assim fizeram de forma contumaz os seus sócios, ou até mesmo
porque este devedor já praticou fraude
similar em algum outro momento de sua vida empresarial? Dadas as condenações
pré-faladas, podemos dizer que houve “racionalidade” nessas decisões? Até que
ponto as “regras de experiência comum” podem fundamentar decisões judiciais?
Quanto à utilização das regras de
experiência, justifica-as Cardoso (2001):
O saber concreto do juiz tanto o que repousa em sua cultura geral como
um saber especializado é aproveitável no processo porque uma recepção
(admissão) de prova não tem sentido se o juiz já possui os conhecimentos que
pretende adquirir. De qualquer sorte, tanto o saber geral derivado do fato
notório como o saber privado do juiz (máximas de experiência) devem ser
explicitados quanto a sua origem, a partir do dever de ofício de fundamentar as
decisões. A licitude da utilização das máximas de experiência é complementada e
justificada pela fundamentação da decisão. Tal fundamentação autoriza a não
recepção formal da prova desnecessária e indica a verossimilitude ou não dos
fatos que embasarão a decisão.
As máximas de experiência, portanto, teriam impacto
fenomenológico no que concerne aos juízos de verossimilhança. Para julgar se um
fato é verossímel ou inverossímel o julgador recorre a um critério mediante o
qual se pode averiguar se o fato narrado pode ser visto como em circunstâncias
similares, ou seja, da forma que normalmente acontece (quod plerumque accidit)
(CARDOSO, 2001). A redução de uma
realidade a uma normalidade seria, então, o apanágio da aplicação das regras de
experiência comum ao caso concreto. Pior, a redução de uma realidade a um
critério de “razoabilidade” conduzindo a um efeito perverso paroxístico: a
decisão injusta.
Não estamos aqui pretendendo aniquilar as máximas de
experiência tão difundidas em doutrinas alienígenas tais como a alemã, muito menos pretendendo mitigar o poder
instrutório dos juízes. Mas, sim, pretendendo asseverar o dever constitucional
de fundamentação dos juízos quanto aos seus julgados, fundamentação esta que
deve ter por primazia a ética no caminho que leva ao alcance da verdade em
detrimento do especial valor conferido às regras de experiência comum. Concluir
em um processo judicial que a parte praticou ilícitos civis ou penais, porque assim
é como “normalmente” se pratica em uma dada circunstância, é um juízo primário,
pobre, leniente e porque não dizer, cruel.
Se Pontes de Miranda nos ensina que o Direito não é a Lei,
assim como o Mapa-Múndi não é o Planeta Terra, acrescentamos que até se suporta
reduzir o Direito à Lei, mas reduzir o
humano ao condicionamento animal próprio dos cupins, é insuportável.
BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A. Curso de Processo Civil. Vol. I,
Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991.
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2001.
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