terça-feira, 29 de setembro de 2015

                                                               Delação, Traição?
                                          Apontamentos iniciais sobre a Delação Premiada
                                                                                              Andrea Campos






"Nullum processus sine accusatione", é o brocardo jurídico que rege o sistema penal acusatório fundado em Atenas e consolidado pelo monumento jurídico que foi o Direito Romano. Logo, ninguém seria levado a juízo sem uma acusação. Esta acusação era feita por particulares, mormente pelo ofendido que a fazia, oralmente, perante o magistrado. O juiz, ato contínuo, entregava à vítima um instrumento denominado de "lex". A natureza jurídica deste documento, apesar der ser a de mandado, era, de fato, um mandato. Através dele, o ofendido colhia provas, ouvia testemunhas, fazia perícias, iniciava-se o procedimento, portanto, inquisitório, uma vez instaurado o processo acusatório. O acusado era chamado a juízo, a este, também cabia a produção de provas. Ab initio, estabelecia-se o contraditório. O processo penal, portanto, desenrolava-se nos moldes do processo civil no qual as partes sustentam a linha que o conduz. Ao final, cabia ao Juiz, tão somente, votar pela condenação ou pela absolvição do acusado, sendo despiciendo, inclusive a sua motivação. Quando um terceiro não interessado fazia a acusação, este era denominado de "delator". A delação foi bastante comum não apenas no sistema penal acusatório da antiguidade, como também em sua fase preponderantemente inquisitória, durante a Idade Média, era a "delatio criminis". O fato de qualquer pessoa, no entanto, poder imputar um crime a outrem, fazendo-a responder a um processo criminal, mesmo sem provas suficientes, quando não, quaisquer provas, deu azo a uma proliferação de denunciações caluniosas, muitas com o escopo de vingança e de destruição da imagem e da reputação alheia.

Após a Revolução Francesa e o estabelecimento do Sistema Processual Penal Misto, Montesquieu comemorou a criação do Órgão do Ministério Público que, ao ser o máximo titular da Ação Penal, o "dominus litis", mitigaria os seculares danos e injustiças em decorrência das "delatios".

Nos dias que correm, muito se tem falado nas delações. Mas, não se trata da "delatio" tal como a concebia os antigos e os intermédios. A delação, também denominada de chamamento do corréu, trata-se de um fenômeno jurídico no qual um acusado, ao ser interrogado em juízo ou ouvido pela polícia, além de confessar a autoria de um fato criminoso, do mesmo modo, atribui a um terceiro a participação no crime como seu comparsa. Cumpre salientar, que a confissão do acusado é elemento essencial da delação, o que por si só refoge à "delatio" dos antigos que consistia tão somente em imputar a terceiro ato criminoso. Portanto, antes de imputar fato criminoso a terceiro, mister que se produza a "probatio probantissima": a confissão do delator. Uma vez que o delator negue a autoria delitiva, cingindo-se a imputá-la a terceiro, tal ato será vazio de valor probatório.

Em 1995 foi positivada, inicialmente, a denominada "delação premiada" na revogada Lei 9034. Atualmente, o instituto o é regido pela Lei 12.850/2013. A delação premiada, também denominada de colaboração premiada ainda está incipientemente positivada e tratada pela doutrina. Sendo que os dispositivos legais que regem a matéria ainda não oferecem detalhes sobre o seu procedimento. Grosso modo, a delação premiada diz respeito a um acordo efetuado entre o Ministério Público e o investigado ou réu. Nesse acordo não participa o juiz que poderia ter afetado o seu livre convencimento, mas sendo a ele levado o acordo para a sua apreciação e aplicação, ou não, do benefício adequado à extensão da colaboração e à sua utilidade. No que tange á sua forma e ao seu conteúdo, a delação premiada não se efetiva em um único ato isolado, mas consiste em um conjunto de atos, configurando-se em um verdadeiro incidente probatório. Dentre esses atos estão, tal como nos ensina Badaró (2014, p. 318): a própria declaração do delator; a entrega de documentos ou coisas em seu poder; a confirmação judicial das declarações extrajudiciais, eventual análise de documentos e outras provas ligados aos fatos; o compromisso de pagar a multa penal e, até mesmo, em casos específicos, a renúncia ao direito de recorrer. Os processualistas, no entanto, se ressentem por ter deixado o legislador várias questões relacionadas com a delação premiada sem disciplina legal. A natureza jurídica de prova testemunhal anômala é plenamente refutada, prevalecendo a de instrumento probatório específico.

No que se refere ao direito material, os seus efeitos se dão quanto à pena que poderá prever a extinção da punibilidade, por vezes, dar início ao cumprimento de pena em regime aberto, ou apenas levar à redução da pena (o que não é pouco). Cumpre a tudo isso somar-se a possibilidade de aplicação de pena restritiva de direito em lugar da pena privativa de liberdade em casos específicos. Não nos esquecendo que, em nosso país, o Brasil, a delação premiada é utilizada, tão somente, em casos de crime organizado.

Diante de um conhecido processo que envolve a promiscuidade entre os poderes públicos e as instituições privadas, ora em trâmite na Justiça Brasileira, e acompanhado por toda a população, muito se tem falado sobre uma eventual natureza antiética do instituto que seria fundado em uma reprovável "ética utilitarista" na expressão cunhada por Fausto de Sanctis, que incentivaria a prática de "traições". Vestibularmente, adentraríamos aqui, questões etimológicas e filosóficas: Quais são os pressupostos para que ocorra a traição? A traição é uma quebra de confiança que exsurge com o descumprimento de um pacto feito por pessoas de boa-fé para práticas lícitas, quer jurídicas ou não. A boa-fé das partes e a licitude de seu objeto seriam, então seus pressupostos inafastáveis. Ocorre a traição, a quebra não pouco dolorosa da fidúcia entre amigos, entre amantes, entre colegas de trabalho, entre negociantes. E entre comparsas, é possível, então que se dê a traição? Entre pessoas de má-fé, que se associam a fim de delinquir, de  levar a cabo as suas sanhas criminosas, de cometerem o ilícito?

Vencido o escrutínio ético que legitima o instituto, acrescentaríamos ser a delação premiada um instituto que vem conferindo novas cores ao processo penal brasileiro, ao direito penal brasileiro. Sabe-se que, originariamente, o direito penal integrava no Corpus Juris Civilis Romano o capítulo do direito das obrigações e somo supra expusemos os seus procedimentos eram de natureza, claramente, civilista. Muito se tem comentado que a delação premiada tem dotado o processo penal com características do Common Law, do direito anglo-saxão. Essas características são as da celeridade e da franca negociação que passa a integrar o processo penal, cujo gérmen (a transação penal) está na Lei 9099/1995 (Lei do Juizados Especiais). A delação premiada demanda grande capacidade de negociação entre as partes processuais, reduz os esforços da investigação e sepulta instrumentos investigatórios obsoletos. Foi publicado em um domingo,  dia 27 de setembro de 2015, um muito bom artigo no Jornal "Folha de São Paulo" de autoria de Estelita Carazzai no qual a jornalista afirma que a Lei da Delação aproxima direito brasileiro de cultura jurídica dos EUA, ou seja, nós os sectários romanistas, filhos do direito continental, do direito civil romano, estaríamos, agora, recebendo a benfazeja influência do dinâmico Commmon Law, do direito insular. Gostei muito do artigo e não julgo falsa a sua assertiva. O que apenas eu gostaria de dizer é que o Direito Penal Inglês e Americano, nada mais é do que o direito penal romano em suas origens, o direito com amplo contraditório e autonomia da vontade das partes, o direito processual penal imiscuído das possibilidades de acordo e transações do processo civil e penal romanos. A Inglaterra, adotou o antigo sistema acusatório romano, seguido por países de anglófilos como os EUA e não o largaram jamais. Nós fomos que o largamos e construímos um novo processo penal a despeito do romano. Ou seja, sem negar que essa é a cultura jurídica americana, a das negociações, o fato é que a sua origem está no Lácio. E em matéria de Direito, incluído nela a da delação premiada, não há como fugir: todos os caminhos levam a Roma.


sexta-feira, 25 de setembro de 2015

                                                          Habemus Mater!
De como o Vaticano teria passado a coibir o crime de Falsa Identidade de Gênero – O suposto caso da Papisa Joana.
                                                                                                                        Andrea Campos

As vozes não são unívocas quanto ao que se passava ao tempo dos chimpanzés, mas sabe-se que desde que somos homo bípede e sapiens, o palco da aventura humana sobre a terra tem sido no mais, quando não, na maioria absoluta das vezes, interditado à entrada das mulheres, mesmos quando estas pagam-lhe o ingresso. Se La Fontaine dizia que “la raison du plus fort est toujours la meilleure” (a razão do mais forte é sempre a melhor), à mulher em sua fraqueza e vulnerabilidade físicas e mentais coube, tradicionalmente, o lugar não dos que não estão com a razão, mas o dos sem-razão.

No entanto, também, historicamente, quer na realidade, quer na ficção, pululam exemplos de mulheres que para estarem aptas a adentrarem na ágora, nos espaços restritos ao gozo dos homens, tais como a política, as guerras, a escrita, as artes, a ciência e a Igreja, travestiram-se de homens e foram insuspeitadas em suas funções pelos mais argutos e mais fortes dos homens. Na literatura brasileira, há o belo exemplo emblemático de Diadorim, personagem do romance "Grande Sertão: Veredas" de João Guimarães Rosa que, filha do líder dos Jagunços Joca Ramiro, traveste-se de homem para poder, também, segui-lo como jagunço e, posteriormente, vingar a sua morte. Na literatura, lembraríamos da escritora francesa George Sand, pseudônimo de Aurore Dupin, que, a fim de estabelecer-se e ser respeitada como escritora, adotou um nome artístico masculino. Sand foi um grande amor do músico Chopin.  Muitas anônimas, até hoje não descobertas, devem existir, mas o espaço no qual uma mulher teria furado e posto abaixo o maior bloqueio, a mais pesada parede de aço, teria sido o da Igreja Católica Romana onde, como sabemos, apesar da mulher poder exercer o sacerdócio, lhe é impedida a  celebração de missas.
Deixemos aqui, bem claro, que Igreja, não se confunde com fé cristã, muito menos com Cristo. Esta distinção é muito bem inferida na excelente obra da escritora francesa Elizabeth Badinter “O Mito do Amor Materno”, na qual a autora afirma que Cristo teria dado um novo estatuto à mulher, irmanando-a aos homens e pondo-se ao seu lado em momentos nos quais estaria sofrendo ou prestes a sofrer violência “aquele que não tiver pecado que atire  a primeira pedra”, teria dito enquanto defendia uma mulher adúltera, assim como se fez acompanhar em seu caminho por uma prostituta, Madalena, e uma vez redivivo, a primeira pessoa a quem se mostrou foi a mesma Madalena, logo, a uma mulher.

No entanto, a Igreja, tradicionalmente, relegou a mulher ao lugar de pecadora máxime, a culpada pelo pecado original, a traidora, a ardilosa, e mesmo sendo Maria, filha de Deus, e mãe de Deus, a esta nunca coube o status de deusa. Até meados da Idade Média, a mulher, para a Igreja, sequer tinha alma. Bem, mas como para as versões, existem as subversões, quem não deu tanta importância a esses óbices e subverteu toda a estrutura e as convenções estabelecidas, seguindo em frente em seus intentos foi uma mulher de nome Joana. Joana teria chegado, não apenas, a celebrar missas, mas a ocupar o trono máximo da Igreja, o trono de Pedro, o trono do Papa na função de um Papa. E sem que ninguém suspeitasse que ela fosse uma mulher. Vamos, doravante, à sua história.
Corria o século IX, ainda alta Idade Média. As mulheres estavam, como soi poderia ser, ocupando os seus lugares tradicionais, quais sejam, os de esposa e mãe de seus filhos, sendo-lhes vedados os estudos, as artes e as funções públicas. No entanto, havia uma mulher que passara grande parte de sua vida vestida de homem cujo nome era Joana. Mas, as vestimentas masculinas não lhe sequestraram a sensualidade e Joana era amante de um monge que era médico. Joana, também, dedicou-se à medicina, tornou-se médica e passou a ser responsável pela saúde do então Papa. Tudo isso trajada em homem, Joana caiu nas graças do Papa e teria sido feita por ele, sua sucessora. Salientando que, em nenhum momento, Joana abrira mão dos carinhos de seu monge amante. Friso isso, pois é curioso atentar que quando as mulheres são homossexuais parece haver uma maior complacência para que as mesmas ocupem e exerçam funções de poder, afinal, são "mulheres-machos". Joana, para o direito atual, portanto, teria cometido o crime de “Falsa Identidade”, distinto daquele, embora muito confundido com ele, o de “Falsidade Ideológica”, senão vejamos o que dispõe o nosso atual Código Penal quanto ao crime de falsa Identidade, In Verbis:

Art. 307 - Atribuir-se ou atribuir a terceiro falsa identidade para obter vantagem, em proveito próprio ou alheio, ou para causar dano a outrem:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa, se o fato não constitui elemento de crime mais grave.

Executando formidavelmente as suas funções de Papa, e de amante de seu caríssimo monge, Joana, durante uma procissão pelas ruas de Roma, teria sofrido as dores do parto e dado à luz um filho. As versões sobre o que teria se seguido ao inusitadíssimo fato, um Papa dando à luz nas ruas, são controversas. Uns dizem ter Joana livrado-se do rebento, jogando-o nos estertores da rua, logo, praticando, o que seria o nosso atual crime de abandono de recém-nascido, In Verbis:

Art. 134. Expor ou abandonar recém-nascido, para ocultar desonra própria:
Pena – detenção, de seis meses a dois anos.
§ 1º – Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave:
Pena – detenção, de um a três anos.
§ 2º – Se resulta a morte:
Pena – detenção, de dois a seis anos.

O artigo supra constante de nosso Código Penal Brasileiro constitui uma forma privilegiada do delito de abandono de incapaz (art. 133), em face do especial motivo que impele o agente a praticar o crime: ocultar a desonra própria.

A outra versão para o fato, nos informa que, uma vez descoberta a falsidade de Joana, esta teria sido apedrejada em praça pública. O que não é incontroverso, mesmo que, por certo, negado, é que, segundo o historiador Peter Stanford, após o episódio joanino, antes de serem coroados, os futuros Papas teriam que se sentar em uma cadeira com as pernas afastadas, enquanto que um diácono lhe faria o exame das partes, verificando se o mesmo possuía, ou não,  testículos. Uma vez verificada a presença de tão imprescindível e necessário acessório, o diácono declararia: “Testiculus Habet!”. Eis aqui a cadeira que teria passado a ser utilizada para o indispensável exame:

A existência da Papisa Joana e de seu papado era plenamente reconhecida pela Igreja Católica durante a Idade média e o Renascimento, tendo passados a serem negados a partir do século XVII, devido ao crescente empoderamento do protestantismo. Para fazer face a uma nova corrente doutrinária, o Vaticano teria procurado apagar e destruir todos e quaisquer registros concernentes à mulher Papa e ao seu pontificado. Rastros de sua existência estariam na criação da carta da “Papisa” no tarot, assim como no hoje abandonado santuário em sua homenagem feito nos arredores do coliseu, na ruela onde ela teria dado à luz.

A Igreja tem se proposto a modernizar-se, alterando-se por conseguinte, disposições de seu Direito Canônico. Essa modernização, mais do que uma generosidade, é a única via, mesmo que a contragosto de muitos, para que esta continue a exercer o seu preponderante poder "Urbi et Orbi". No mais, diremos que os avanços serão, de fato, notáveis, quando, ao final de um Conclave, tendo sido cuspida a fumaça da Capela Sistina, possamos ouvir em lauto e belíssimo latim, abrindo as janelas do Vaticano para um novo tempo: "Habemus Mater!".

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

                                "Só o que tenho a confessar é a minha dor"
                                  Da Confissão como a Rainha das Provas

                                                                                         Andrea Campos


No Sistema Processual Penal Inquisitorial, cujos gérmens estão em Roma, mas foi plenamente implementado durante a Idade Média em contraposição ao sistema antecessor, o antigo sistema acusatório, a confissão se consolidou na  categoria de “rainha das provas”. 

Sendo vigente o direito canônico, entendia a Igreja ser a confissão obra do “espírito santo” que por sua interseção na alma do réu, faria brotar de sua boca a veríssima verdade. E o melhor caminho em direção à vera verdade, à palavra em som transbordada, seria, naturalmente, o caminho da dor. A dor dos iníquos, a dor dos ímpios. A dor infligida pelas raias da tortura. A dor coagulada na memória do sangue. A dor em carne desfibrilada. A dor, nódoa do tempo tatuando o silêncio. A dor calda fervente na pele dos endiabrados. A dor consumida em imagens esfaceladas no espelho. A dor degenerada, esquartejando o momento infindo. A dor retesada ao limite da existência pouca. A dor, corda rota da cítera silenciada. Digo o que queiras para me salvar da dor! O que queres que eu diga?

E já que o caminho rumo à verdade seria o da dor a fecundar, pelo espírito santo, a alma do réu, dando-se à luz, a verdade, liberto estaria o algoz torturador da culpa pela prática do máximo  mal, já que o seu máximo mal era a via própria para o máximo bem. E já que podemos narrar o medonho através do  belo, escolho um trecho da obra-prima do escritor italiano Umberto Eco (1983, p.433), “O Nome da Rosa”, para ilustrar o que, até agora, dissemos:

“Agora só eu sei o que deverá ser feito”, disse Bernardo com um sorriso tremendo. “Tu não deves senão confessar. E estarás danado e condenado se confessares, e estarás danado e condenado se não confessares, porque serás punido como perjuro! Então confessa, ao menos para abreviar este dolorosíssimo interrogatório, que perturba nossas consciências e o nosso senso de brandura e de compaixão!”
         “Mas o que devo confessar?”

O que seria confessado, bem mais do que a verdade, atenderia ao desejo dos torturadores: Toma a verdade que queres e que pela minha dor me pedes.

Apesar de expurgada de todo e qualquer sistema legal democrático, sabemos que ainda há, sim, a prática da tortura, mas, por óbvio, não legitimada, assim como a confissão há muito deixou de ser a rainha das provas para ser entendida pelo legislador pátrio brasileiro no atual Código de Processo Penal, como, tão somente, uma prova não conclusiva em meio a outras provas cujo valor maior, atualmente, é conferido à prova pericial.

Vejamos como o nosso ordenamento positiva a prova de confissão no Código de Processo Penal vigente, IN VERBIS:

                                                CAPÍTULO IV

                                                 DA CONFISSÃO

        Art. 197.  O valor da confissão se aferirá pelos critérios adotados para os outros elementos de prova, e para a sua apreciação o juiz deverá confrontá-la com as demais provas do processo, verificando se entre ela e estas existe compatibilidade ou concordância.

        Art. 198.  O silêncio do acusado não importará confissão, mas poderá constituir elemento para a formação do convencimento do juiz.

        Art. 199.  A confissão, quando feita fora do interrogatório, será tomada por termo nos autos, observado o disposto no art. 195.

        Art. 200.  A confissão será divisível e retratável, sem prejuízo do livre convencimento do juiz, fundado no exame das provas em conjunto.

No que tange à tortura, não um método divino de persecução da verdade, mas sim, um crime, o mesmo é tratado na Magna Carta e regido por Lei Especial, IN VERBIS:

                  Constituição da República Federativa Do Brasil
(...)
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;
...
XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;

Quanto à regência de Lei Especial sobre o crime de tortura, esta é a de no. 9455 de 1997. Aqui o artigo que traz o conceito do tipo penal, IN VERBIS:

Art. 1º Constitui crime de tortura:

I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:

a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;

b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;

c) em razão de discriminação racial ou religiosa;

II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.

Pena - reclusão, de dois a oito anos.


O Brasil também é signatário de várias Convenções Internacionais que vedam a prática de tortura, mormente no que tange à extração de confissão criminosa.


No mais, somos todos, todos pecadores e confessamos, diariamente, “por minha culpa, por minha máxima culpa”. Que culpa queres que eu tenha?



terça-feira, 22 de setembro de 2015

                                                         O Sínodo do Cadáver
                                                                Andrea Campos
                                                                              



Refletindo sobre a possível frustração da Ação Penal no caso do assassinato do poeta Federico García Lorca, em face da provável já morte de todos os seus algozes, lembrei-me de um fato bizarro, mas não menos risível, passado mais de um milênio, que versa sobre o julgamento seguido de condenação de uma pessoa morta: o Sínodo do Cadáver.

O caso medonho se deu durante a Idade Média, no séc. IX e foi praticado por uma Papa:  Estêvão I.

Estêvão I acusou o seu antecessor, o Papa Formoso, então já morto há nove meses, de ter cometido os crimes de perjúrio, de ter exercido o ofício de bispo quando ainda era leigo e de ter tentado apoderar-se do trono do papa João VIII quando este ainda era vivo.

De modo que o julgamento fosse levado a cabo, o corpo do Papa Formoso foi exumado, paramentado com os ornamentos e as insígnias papais  e entronizado na Basílica de São João de Latrão. O Papa Estêvão I, de pé em frente ao trono e com o dedo em riste, teceu o seu libelo acusatório diante de um Papa imóvel que não pronunciou uma só palavra e nem se queixou de nada. O Papa Formoso foi julgado culpado. Impossibilitado de cumprir com a pena máxima, a pena de morte, o Papa Estêvão cortou-lhe três dedos da mão direita, usados para dar as bênçãos, declarou todos os seus atos e ordenações inválidos e enterrou-o no cemitério dos estrangeiros. Ainda não satisfeito, desenterrou-o e sacudiu o seu corpo às águas do rio Tibre. 

O fato gerou comoção entre os romanos que começaram a dizer estar havendo milagres nos locais por onde o corpo do Papa percorria sob e sobre as águas. O Papa Estêvão acabou sendo preso e morreu estrangulado na prisão. O seu sucessor, o Papa Teodoro II anulou o sínodo do cadáver e uma vez encontrado o corpo do Papa, mandou que este fosse enterrado com todas as honras na Basílica de São Pedro. Teodoro II baixou uma lei canônica proibindo o julgamento de pessoas mortas. 

Quanto ao fundamento jurídico da anulação do julgamento post-mortem do Papa Formoso este não residiu no fato de ele já estar morto, mas por não ter tido direito à defesa...rs


                                               "O mais era morte e apenas morte" 
    Do Ajuizamento de Ação Penal na Argentina pelo Desaparecimento do poeta Federico García Lorca na Espanha.

                                                                                             Andrea Campos






A que horas fechou os olhos para o mundo o poeta andaluz? Qual granada fez escorrer os despojos de seu corpo? Onde desencavar a dor de sua morte já prevenida? O grande poeta espanhol Federico García Lorca foi cruelmente assassinado por tropas franquistas em uma madrugada do ano de 1936. Foi covardemente assaltado no aconchego de seu lar enquanto dormia, tendo sido levado por oficiais  a um terreno baldio. Ali, dispararam-lhe tiros de baioneta no ânus. Federico, além de fazer oposição ao regime do General Franco, era homossexual.

Em que local ceifaram-lhe a vida? Onde foi enterrado o seu corpo? Quem foram os seus algozes? A literatura faz ilações e tenta compreender o incompreensível, mas é ao Direito que cabe dar uma solução justa ao injusto. O Direito, esse sistema criado pelos controversos humanos para a  solução pacífica das controvérsias. Enfatiza-se muito o seu caráter pacífico, mas o sentimento de justiça, não apenas reclama pela paz, reclama por uma solução justa em face de uma violação. E quanto maior a ferida deixada por essa violação, mais protegido será o bem jurídico violado, tanto materialmente, quanto processualmente. É o que ocorre com as violações em massa do direito à vida como no holocausto, é o que ocorre nos crimes praticados contra milhares de pessoas durante regimes ditatoriais. Essas violações são tipificadas como crimes contra a humanidade e por serem as vítimas todos nós, humanos, independente de origem, etnia e credo,  por termos sido nós os violados na alma tanto quanto aquele que foi violado na carne, a esses crimes caberá a denominada "Jurisdição Universal", também chamada de "autdeereautpunire". Ou seja, a persecução penal referente aos mesmos, poderá ser iniciada em qualquer jurisdição do mundo, independentemente do local onde tenha ocorrido a ação ou o resultado do ilícito, independente do país de nacionalidade do autor ou da vítima.

Por óbvio que, nesses casos, os procedimentos processuais atingem máxima complexidade, esbarrando em óbices, muitas vezes tidos como incontornáveis para a sua consecução. Basta atentarmos para as dificuldades de produção probatória, citação e intimação dos réus, homologação da sentença estrangeira. No entanto, o que mais mobiliza o jurisdicionado e os que se debruçam sobre o tema, não é apenas os entraves para os atos processuais, facilitados por um mundo cada vez mais globalizado e interconectado, mas sim, o fato de que a Jurisdição Universal pretende se legitimar e se fazer valer perante ao princípio mais caro a todas as Nações: as suas Soberanias. Portanto, para tecer considerações acerca do tema, mormente no que tange à barbárie do que foi o assassinato do poeta andaluz, Federico García Lorca, chamo ao meu auxílio, um outro poeta, também ibérico, mas português: Luiz Vaz de Camões. É ele quem nos diz "Cesse tudo o que a antiga musa canta/ Que outro valor maior se alevanta". Municiados por Camões, sigamos.

O projeto “The Princeton Principles on Universal Jurisdiction” define a Jurisdição Universal, também denominada de "competência repressiva universal", como  “uma jurisdição baseada apenas na natureza do crime” - jurisdição esta que poderia ser utilizada pelas Cortes nacionais para processar e punir, e assim desencorajar os atos hediondos reconhecidos como crimes graves sob o direito internacional. A internacionalista Renata R. Fasano (2011) nos informa ser a Jurisdição Universal  “a possibilidade de tribunais nacionais julgarem, independentemente da existência dos vínculos tradicionais do direito penal, do princípio da territorialidade, da nacionalidade e da proteção dos indivíduos acusados do cometimento de crimes internacionais que remetem às graves violações de direitos humanos.

Mas, o que, juridicamente, poderia ser entendido por "universal"? A universalidade estaria vinculada à própria natureza dos crimes em face dos quais, qualquer Estado poderia lançar mão da prerrogativa de jurisdição universal. Logo, a jurisdição universal não se aplica a todo e qualquer crime, por mais bárbaro que este possa nos parecer, mas, tão apenas, a uma categoria específica de crimes internacionais. O interesse de exercer essa prerrogativa seria de todo e qualquer Estado que se sentisse ofendido e agredido por aquele fato criminoso que ele mesmo abomina e condena universalmente. A ampliação da competência estatal seria uma forma de ampliação, também, da proteção à comunidade internacional. Lembrando o imenso jurista italiano Piero Calamandrei (apud TOURINHO FILHO, 2011) que nos ensina que "ante a ausência de um poder supraestatal capaz de impor com a força as próprias decisões aos Estados, a extrema ratio para resolver os conflitos é a guerra". A Jurisdição Universal, no entanto, tenta resolver e sanar a ferida causada pela violação de direitos, não através de um órgão supraestatal, mas outorgando competência universal aos tribunais estatais.

Apesar de o tema não ser tão recorrente em nossa história de seres legislados, e ainda bem por isso, já que a Jurisdição Universal se aplica a tragédias e barbáries específicas, o fato é de que não há nada de muito novo sobre a terra no que se refere a ela, bastando-nos lembrarmo-nos do caso de Eichmann que foi julgado em Israel por crimes cometidos na Alemanha contra os Judeus. Claro que nesse caso, maior estranhamento jurídico não ocorre já que o Estado de Israel,  seria o Estado do povo judaico, não importando onde os integrantes desse povo teria nascido, vivido e sido vitimizado. O que consideraríamos como maior precedende para a Jurisdição Universal seria o "Caso Pinochet", ajuizado por tribunal espanhol. Vejamos, o que nos informa Leonardo Bandarra (2014):


Em 1996, o juiz espanhol Baltasar Garzón recebeu uma denúncia apresentada pela Unión Progresista de Fiscales de España contra Pinochet “por seu envolvimento no desaparecimento de cidadãos espanhóis na Argentina e no Chile, que remetiam à Operação Condor”, denúncia a qual foram agregados crimes de tortura, terrorismo e genocídio. Incorporaram-se também posteriormente ao caso, pela via do actio popullaris (ação popular) do direito espanhol outros cidadãos e entidades (como a Fundação Salvador Allende). Ademais foi confirmada, a partir do princípio da universalidade, a competência ao tribunal para julgar o caso. Dessa forma, configurou-se um caso de aplicação do conceito da jurisdição universal, dada a natureza dos crimes aos quais se acusava o então ex-chefe de Estado, ou seja, crimes de natureza jus congens. Por esses motivos, embora tenha contribuído para legitimar os procedimentos jurídicos espanhóis para o caso, a nacionalidade espanhola das vítimas não se fazia juridicamente necessária para o aceite do caso por Garzón.  Cabe salientar, ainda, que tal aplicação do conceito de jurisdição universal por um tribunal nacional para julgar crimes considerados como “graves violações” ou  contra a humanidade cometidos por um individuo estrangeiro em território também estrangeiro não foi inédito, pois, apesar da existência do precedente do caso Israel vs. Eichmann, no qual o ex-general nazista foi condenado em Israel por crimes cometidos durante o holocausto,o caso Pinochet inovou ao ter como réu um ex-chefe de Estado, que, portanto, gozaria dos privilégios de imunidade pelos atos cometidos.


Baltazar Garzón, atua, hoje, junto ao Ministério Público do Tribunal Penal Internacional e quando era juiz de instrução determinou a feitura de diligências de modo que fossem determinadas as localidades de fossas coletivas, a fim de encontrar a fossa na qual estariam os despojos de Federico García Lorca. A providência tomada por Garzón estava alicerçada no fato de o desaparecimento forçado, no direito brasileiro denominado de sequestro de pessoas, estar tipificado no rol de crimes contra a humanidade, de efeito permanente e ser, segundo a jurisprudência do Tribunal Penal Internacional, da Corte Europeia de Direitos Humanos e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, imprescritível. Garzón foi afastado de suas funções por conflito positivo de competência e o mandado não foi levado a termo. Mas eis que em agosto do ano de 2015, nós amantes da poesia e do direito fomos surpreendidos pela notícia de que uma  associação de vítimas do franquismo anunciara  que denunciaria a morte (pra nós imorredoura) de  Federico García Lorca, fuzilado nos primeiros dias da Guerra Civil Espanhola, perante a juíza argentina que investiga os crimes da ditadura franquista. Eis o comunicado:  "A Associação para a Recuperação da Memória Histórica (ARMH) apresentará uma denúncia pelo desaparecimento do poeta Federico García Lorca ante a juíza argentina Maria Servini de Cubria". Pelo comunicado, inferimos que no direito argentino há uma prática que refoge ao nosso Princípio do Juiz Natural, pois de forma alguma poderíamos ajuizar uma ação perante um juiz, previamente, determinado. Prima Facie, o que me parece é que o Juiz teria competência não apenas de Estado Juiz, mas também, de Estado Administração, exercendo o que para nós é atribuição exclusiva do Ministério público. Mas, o fato é que a juíza Servini de Cubria tem um histórico de atuação, valendo-se da Jurisdição Universal. Em 2010, a mesma abriu um inquérito (no direito brasileiro, o juiz não teria essa competência, apenas a Polícia Judiciária e o Ministério Público) em face dos crimes cometidos durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e durante a ditadura do General Francisco Franco (1939-1975). Cubria ordenou, ao final de 2013, a abertura de todos os consulados argentinos no mundo para atender as vítimas do franquismo. Em maio de 2014, como uma saudada da lei, viajou para a Espanha a fim de se encontrar com algumas vítimas que, em razão de suas idades avançadas ou estados de saúde, estariam impedidas de viajarem à Argentina. Ou seja, a juíza foi ouvir as partes interessadas in locu.

Quanto às investigações em torno do local onde estaria enterrado o poeta Federico García Lorca, várias escavações foram realizadas nas cercanias de Granada, a cidade onde morava o poeta ao sul da Espanha e onde foi cometida a barbárie. Apesar dos esforços, não foram, até hoje, encontrados os seus restos mortais.

Há alguns anos, foi descoberto um documento no qual o regime de Franco teria reconhecido o crime que cometera contra Lorca. No comunicado da Associação ainda consta: "A ARMH solicitará à juíza que exija do governo da Espanha qualquer documentação semelhante que possa indicar o paradeiro de pessoas desaparecidas e esclarecer os fatos que levaram à sua detenção ilegal e subsequente morte".

Mas o que levou as vítimas espanholas a recorrerem à Justiça Argentina? A resposta é o fato de haver sido promulgada na Espanha em 1977, a Lei da Anistia quanto às práticas da ditadura franquista. Esta Lei foi promulgada no momento de transição da ditadura para a democracia. A meu ver aqui reside o um dos grandes desafios do caso frente à Jurisdição Universal: O crime continua a ser imprescritível, mesmo quando o Estado no qual o mesmo foi cometido perdoou o agressor? Poderá esse Estado homologar sentença estrangeira de decisão que ordena a condenação de alguém por um crime já perdoado por esse Estado? No que concerne ao processo penal, mais questões nos assolam: Os prováveis algozes ainda estão vivos? Ao menos pelo direito brasileiro, pessoas jurídicas, salvo em casos de crimes ambientais, não podem responder criminalmente, portanto, na falta de um réu que fosse pessoa física viva, frustrada estaria a Ação Penal. A única possibilidade seria uma Ação Civil de Reparação de danos no qual o Estado Espanhol respondesse objetivamente, já que não poderia aduzir que ao tempo do dano, o Estado vigente era o de exceção.

O processo ainda não foi concluído. Deixemos que a jurisprudência nos conte o final dessa história. Quanto a nós, resta chorarmos, eternamente, enquanto os abutres cantam, a morte trágica do poeta e, tal qual Antígona, rogarmos que um dia, em uma hora, qualquer hora que seja, ele tenha um lugar que possa ser chamado de sua sepultura .Que seja feito o seu enterro a qualquer hora, contanto que seja feito, talvez, às cinco horas da tarde:

Às cinco horas da tarde.
Eram cinco da tarde em ponto.
Um menino trouxe o lençol branco
às cinco horas da tarde.
Um cesto de cal já prevenida
às cinco horas da tarde.
O mais era morte e apenas morte
às cinco horas da tarde.


Federico García Lorca

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

O filme "O Último Tango em Paris" em interface com o Direito dos Contratos.
                                                                                      Andrea Campos
                                                             (Professora de Direito Civil e Advogada)




http://jus.com.br/artigos/13835/luz-camera-e-acao-nulidade-contratual-no-filme-o-ultimo-tango-em-paris