segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

 MISS UCRÂNIA CONVOCA SEUS COMPATRIOTAS PARA A LINHA DE COMBATE


"Certa vez, uma mulher que havia sido piloto recusou-se a se encontrar comigo. Por telefone, explicou: “Não posso… Não quero lembrar. Passei três anos na guerra… E, nesses três anos, não me senti mulher. Meu organismo perdeu a vida. Eu não mens-

truava, não tinha quase nenhum desejo feminino. E era bonita… 


Quando meu futuro marido me pediu em casamento… Isso já em Berlim, ao lado do Reichstag… Ele disse: ‘A guerra acabou. Sobrevivemos. Tivemos sorte. Case comigo’. Eu queria chorar. Começar a gritar. Bater nele! Como assim casar? Agora? No meio de tudo isso — casar? 


No meio da fuligem preta, de tijolos pre-tos… Olhe para mim… Veja em que estado estou! Primeiro, faça de mim uma mulher: me dê flores, flerte comigo, diga palavras bonitas. Eu quero tanto isso! Esperei tanto! Por pouco não bati nele… Queria bater… Uma de suas bochechas estava queimada, vermelha, e eu vi que ele tinha entendido tudo: desciam lágrimas por essa bochecha. Pelas cicatrizes ainda recentes… E eu mesma não acreditei que estava dizendo: ‘Sim, eu me caso com você’."


Svetlana Aleksandrovna Aleksiévitch (Escritora russa nascida na Ucrânia) in 

A GUERRA NÃO TEM ROSTO DE MULHER.


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Foto de Anastasia Lena, Miss Ucrânia 2015, que está convocando os seus COMPATRIOTAS para a linha de Combate na Guerra em 2022.




 Em tempos de Guerra...


"A guerra “feminina” tem suas próprias 

cores, cheiros, sua iluminação e seu espaço sentimental. Suas próprias palavras. Nela, não há heróis nem façanhas incríveis, há apenas pessoas ocupadas com uma tarefa desumanamente humana. 


E ali não sofrem apenas elas (as pessoas!), mas também a terra, os pássaros, as árvores. Todos os que vivem conosco na terra. Sofrem sem palavras, o que é ainda mais terrível.


Mas por quê? — perguntei-me mais de uma vez. — Por que, depois de defender e ocupar seu lugar em um mundo antes absolutamente masculino, as mulheres não defenderam sua história? 


Suas palavras e seus sentimentos? Não deram crédito a si mesmas. Um mundo inteiro foi escondido de nós. A guerra delas permaneceu desconhecida…


Quero escrever a história dessa guerra. A história das mulheres."


Svetlana Aleksandrovna Aleksiévitch,escritora russa nascida na Ucrânia in 

A GUERRA NÃO TEM ROSTO DE MULHER.



domingo, 27 de fevereiro de 2022

 O ESCRAVO NEGRO NA VIDA SEXUAL E DE FAMÍLIA DO BRASILEIRO (CAPÍTULO IV de CASA GRANDE & SENZALA)


"Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma e no corpo -...- a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro.

...

Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. (...) Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama de vento, a primeira sensação completa de homem.


Já houve quem insinuasse a possibilidade de se desenvolver das relações íntimas da criança branca com a ama de leite negra muito do pendor sexual que se nota pelas mulheres de cor no filho-família dos países escravocratas. A importância psíquica do ato de mamar. (...)


Conhecem-se casos no Brasil não só de predileção mas de exclusivismo: homens brancos que só gozam com negra.  (...) Casos de exclusivismo ou fixação. Mórbidos, portanto; mas através dos quais se sente a sombra do escravo negro sobre a vida sexual e de família do brasileiro".


Gilberto FREYRE in Casa Grande & Senzala. (1933/2006) p. 367-368



 E SEGUNDO GILBERTO FREYRE A MAIOR PARTE DOS PAJÉS ERAM BISSEXUAIS OU HOMOSSEXUAIS.


"Quanto aos pajés, é provável que fossem daquele tipo de homens efeminados ou invertidos que a maior parte dos indígenas da América antes respeitavam e temiam do que desprezavam ou abominavam. (...) 


A verdade é que para as mãos de indivíduos bissexuais ou bissexualizados pela idade trabalharam em geral os poderes e funções de místicos, de curandeiros, pajés, conselheiros, entre várias tribos americanas."


Gilberto FREYRE in Casa Grande & Senzala (1933/2006) p. 186


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Ilustração: Pajé americano e um de seus esposos.



 POLIGAMIA: DIVERSIFICAÇÃO DE PARCEIRAS OU EXPLORAÇÃO DA FORÇA DE TRABALHO FEMININA? 


A partir da leitura do texto de Gilberto Freyre, podemos inferir que a poligamia no Brasil, em alguns casos, a partir do exemplo da cultura indígena, tem por base, mais a exploração da força de trabalho feminina do que a necessidade de diversificação de parceiras sexuais. Ou, no mínimo, ambas, em um mesmo grau de importância. Leiamos:


"A poligamia não corresponde entre os selvagens que a praticam -  incluídos neste número os que povoavam o Brasil - apenas ao desejo sexual, tão difícil de satisfazer no homem com a posse de uma só mulher; corresponde também ao interesse econômico de cercar-se o caçador, o pescador ou o guerreiro dos valores econômicos vivos, criadores que as mulheres representam.


Os indígenas do Brasil estavam pela época da descoberta, ainda na situação de relativo parasitismo do homem e sobrecarga da mulher. Eram as mãos criadoras da cunhã que reuniam os principais trabalhos regulares de arte, de indústria, de agricultura".


Gilberto Freyre in Casa Grande & Senzala (1933/2006) p. 186


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Pela ilustração abaixo, uma fotografia atual de uma família indígena brasileira, o parasitismo dos homens e a poligamia como forma de um homem se aproveitar do trabalho de mais de uma mulher não parece ser uma prática apenas dos tempos da descoberta... E entre os brancos "civilizados", o que você acha?




 O SINHOZINHO, O MOLEQUE E O CHICOTE ERÓTICO.


"O furor femeeiro do português se terá exercido sobre vítimas nem sempre confraternizantes no gozo; ainda que se saiba de casos de pura confraternização do sadismo do conquistador branco com o masoquismo da mulher indígena ou da negra. Isso quanto ao sadismo de homem para mulher - não raro precedido pelo de senhor para moleque. Através da submissão do moleque, seu companheiro de brinquedos e expressivamente chamado "leva-pancadas", iniciou-se muitas vezes o menino branco no amor físico.


Quase que do moleque leva-pancadas se pode dizer que desempenhou entre as grandes famílias escravocratas do Brasil as mesmas funções de paciente do senhor moço que na organização patrícia do Império Romano o escravo púbere escolhido para companheiro do menino aristocrata: espécie de vítima, ao mesmo tempo que camarada de brinquedos, em que se exerciam os "premiers élans génésiques" do filho-família."


Gilberto FREYRE in Casa Grande & Senzala (1933/2006) p.112



 ESCRAVOS EM TRAJES DE LUXO E NA MAIS ALTA POTÊNCIA FÍSICA.


Gilberto Freyre em sua obra-prima, Casa Grande & Senzala nos informa que não há como pensar o Brasil se não percebermos a sua formação equilibrada sobre antagonismos. Antagonismos que, sem dúvida, embaçam violências e perversões. No tocante à escravidão há dois aspectos senão curiosos, mas que bem representam esse paradoxo: os trajes luxuosos com os quais se vestiam alguns escravos e a boa forma física de grande parte deles. Como pode o bem vestir e os bons cuidados conviverem com um regime de trabalho desumano? O que ocorre é que aqui não se trata de um ser humano, mas de um bem de propriedade de seus senhores. E como toda coisa apropriada, muito revela sobre as condições de seu dono. O bem trajar de um escravo ou de uma escrava, muitas vezes, com mais luxo do que brancos e brancas trabalhadores livres, vestimentas cujo valor, não raro, daria para comprar mais dois escravos, denotava a quantas andava o poder econômico e social de seus senhores. Algo como um automóvel. Se o seu dono é rico, ele será de alto luxo e terá um tratamento à altura. 


O mesmo e ainda mais se diga sobre a alimentação. Freyre não poucas vezes acentua a compleição física dos escravos como significativamente mais robusta do que os brancos das classes intermédias e inferiores o que teria assegurado melhor saúde e resistência para as suas descendências. No entanto, mais uma vez, longe de bondade, justeza e favor, o que se fazia era o mesmo que azeitar uma máquina no intuito de auferir lucros com uma maior e melhor produção. 


E nada disso, por mais de três séculos, foi atravessado por quaisquer laços de afeto? Era tão somente o poder de  humanos sobre "coisas"? Violência com açúcar? É em razão da complexidade e paradoxos que envolvem as perguntas  acerca dos problemas raciais no Brasil decorrentes não apenas do regime escravocrata, mas pelos moldes com os quais se deu a sua abolição, que as respostas para sanar as desigualdades, embora não sejam difíceis, encontram solo fértil para difíceis se tornarem.


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Todas as ilustrações são de Jean-Baptiste Debret, artista integrante da Missão Artística Francesa,  encarregado de pintar o cotidiano da sociedade brasileira em inícios do século XIX.







sábado, 26 de fevereiro de 2022

Mais uma do misógino Ministro Marco Aurélio

Você até afirma que quer deixar, um pouco de lado, as discussões de violência de gênero,  quer tirar férias dessa sociedade machista e patriarcal que nos esmaga o ano inteiro, ao menos, durante o carnaval, mas os implicados de sempre, irrefreáveis em suas máquinas de moer mulheres, não nos deixam, sequer, por alguns dias, tirarmos esse descanso. Foi o que ocorreu no Carnaval de 2017.

Em 2017, em mais uma decisão misógina, sim, ele é um ás nessa tecnologia azeitada da misoginia, o Ministro Marco Aurélio permitiu que um monstro confesso que mandou esquartejar uma mulher e, provavelmente, lançou os pedaços de sua carne aos cães, respondesse o seu processo em liberdade, já que "nada" justifica a sua prisão. 

Ou seja, esquartejar uma mulher e jogar suas carnes fora é o mesmo que "nada".  Que maravilha, Excelentíssimo! Ainda bem que se aposentou para que não continuasse corroborando requintadamente com a máquina de moer mulheres nesse país!




 VOCAÇÃO AUTORITÁRIA  NO BRASIL SEGUNDO O PENSAMENTO DE GILBERTO FREYRE.


"A nossa tradição revolucionária, liberal, demagógica, é antes aparente e limitada a focos de fácil profilaxia política: no íntimo, o que o grosso do que se pode chamar "povo brasileiro" ainda goza é a pressão sobre ele de um governo másculo e corajosamente autocrático. (...)


Por outro lado, a tradição conservadora no Brasil sempre se tem sustentado no sadismo de mando, disfarçado em "princípio de Autoridade" ou "defesa de Ordem". Entre essas duas místicas - a da  Ordem e a da Liberdade, a da Autoridade e a da Democracia - é que se vem equilibrando entre nós a vida política, precocemente saída do regime de senhores e escravos."


Gilberto FREYRE in Casa Grande & Senzala. (1933/2006) p. 114-115.


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Ilustração: Jean-Baptiste Debret "Retour d'un Proprietaire".



 O CARÁTER SADOMASOQUISTA NA FORMAÇÃO DO POVO BRASILEIRO SEGUNDO O PENSAMENTO DE GILBERTO FREYRE.


"Moll salienta que a primeira direção tomada pelo impulso sexual na criança - sadismo, masoquismo, bestialidade ou fetichismo - depende em grande parte de oportunidade ou chance, isto é, de influências externas sociais. Mais do que de predisposição ou de perversão inata. (...) Nesse período é que sobre o filho da família escravocrata no Brasil agiam influências sociais -  a sua condição de senhor cercado de escravos e animais dóceis - induzindo-o à bestialidade e ao sadismo. Este, mesmo dessexualizado depois, não raro guardava em várias manifestações da vida ou da atividade social do indivíduo, aquele "sexual undertone", que segundo Pfister, "is never lacking to wellmarked sadistic pleasure". 


Transforma-se o sadismo do menino e do adolescente no gosto de mandar dar surra, de mandar arrancar dente de negro ladrão de cana, de mandar brigar na sua presença capoeiras,  galos e canários - tantas vezes manifestado pelo senhor de engenho quando homem feito; no gosto de mando violento ou perverso que explodia nele ou no filho bacharel quando no exercício de posição elevada, política ou de administração pública; ou no simples e puro gosto de mando, característico de todo brasileiro nascido ou criado em casa-grande de engenho. Gosto que tanto se encontra, refinado em um senso grave de autoridade e de dever, em um D. Vital, como  abrutalhado em rude autoritarismo em um Floriano Peixoto. (...)


Mas esse sadismo de senhor e o correspondente masoquismo de escravo, excedendo  a esfera da vida sexual e doméstica, têm-se feito sentir através da nossa formação, em campo mais largo: social e político. Cremos surpreendê-los em nossa vida política, onde o mandonismo tem sempre encontrado vítimas em quem exercer-se com requintes às vezes sádicos; certas vezes deixando até nostalgias logo transformadas em cultos cívicos, como o do chamado marechal-de-ferro".


Gilberto FREYRE in Casa Grande & Senzala. (1933/2006), p.113-114.


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Ilustração: Jean-Baptiste Debret "Mercado de Tabaco".



quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

 SER FREIRA NO PATRIARCADO: MENOS DO QUE UM CAMINHO RESIDUAL, UMA POSSIBILIDADE LIBERTÁRIA.


Diversamente do que narra o discurso e o pensamento corrente, a opção tida, muitas vezes como residual de adentrar os impermeáveis muros de um claustro, poderia ser, ao invés, a possibilidade de uma vida de maior porosidade com o mundo para as mulheres. Durante séculos e porque não dizer, milênios, a existência feminina circunscrevia-se ao espaço da intimidade, da prisão doméstica. Apenas às mulheres consideradas "públicas" ou que não eram "de família", geralmente, órfãs, filhas bastardas de imigrantes e aventureiros é que poderiam caminhar livremente sobre o chão da vida. Às demais, "privilegiadas" e contempladas por estarem inseridas no jogo patrimonial do modelo patriarcal, cabia, restritivamente, estarem sob o látego paterno e deste transitarem para o látego do marido. E responderem bem às suas funções de reprodutoras e cuidadoras do lar, assujeitadas às ordens do "chefe" da família. Poucas tinham acesso à cultura e à educação. O mesmo não se dava com as freiras. Desagrilhoadas da lógica de poder masculina, viviam em irmandade com outras mulheres (e não que nessas irmandades não houvesse opressão no exercício do poder, mas, ao menos, era poder feminino). Nelas, eram facultadas à leitura, ao estudo, à vida intelectual e à prática das artes. A partir delas, a não ser naquelas que até hoje, pouco permitem as incursões para o mundo, tal como a Ordem Carmelita, poder-se-ia transitar, não apenas para as praças e os rincões de suas comunidades, mas para sítios distantes como atividade integrante de suas "missões". No Brasil Colônia, por exemplo, as freiras muito rezavam, assim como as demais mulheres. Mas, também, muito cantavam e mais ainda: dançavam! E dançavam danças que jamais seriam permitidas àquelas que tiveram a "sorte" de bem  casarem e procriarem. As freiras no Brasil Colônia dançavam o lundu! Dança tida por lasciva e luxuriosa coreografada pelos escravos... E assim, ser freira, poderia representar, mais do que apenas um caminho residual daquelas que estavam perdidas (desvirginadas) ou não haviam conseguido um casamento, ou das que estavam destinadas a oferecer um status de respeitabilidade às suas famílias. Ser freira poderia representar uma carta de alforria do regime de escravidão ao qual estavam submetidas as mulheres no patriarcado...



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Ilustração: Freiras dançando o lundu.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

 Aqui não se trata de infidelidade conjugal feminina "tout court", aquela machadiana movida por desejos reconditos e inesperados que escapam ao controle do modelo monogâmico, imposto a ferro e fogo de forma singular sobre as mulheres, refletindo uma dupla moral. 

Mas, aqui se trata de mulheres legitimamente casadas, de famílias, aparentemente, "funcionais" e que "caem" na promiscuidade, na orgia sexual, na esbórnia das carnes e na prostituição. 

Exemplificou o fato através de duas personagens do cinema e da literatura, que considero de maior complexidade quanto à sexualidade feminina: A Dama do Lotação e A Bela da Tarde. Em comum, ambas sofreram violência sexual: A Dama do Lotação foi estuprada pelo próprio marido na noite de núpcias e a Bela da Tarde sofreu abuso sexual na infância... Uma coisa não leva, necessariamente, à outra, mas merecem a nossa reflexão no âmbito dos impactos das violências contra a mulher...




segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

 DA DOCÊNCIA COMO SACERDÓCIO

(REFLEXÕES A PARTIR DE UMA "FAKE NEWS")






Tem circulado nas redes sociais, já há alguns anos, um modelo de contrato de trabalho que seria destinado a ser celebrado entre Conselhos de Educação Escolares e Professoras em São Paulo no ano de 1923. O contrato seria um anexo (ainda não constatei a procedência dessa informação) de um artigo escrito pela pesquisadora Jane Soares de Almeida sobre as transformações da carreira docente e sobre a inserção das mulheres nessa atividade, seus desafios e suas limitações. Pude verificar que a minuta é uma tradução ipsis litteris de um modelo de minuta contratual da Associação Escolar de Ohio nos EUA do mesmo ano, assim como de um modelo de minuta contratual espanhola, também do mesmo ano. Até mesmo as datas e os valores salariais a serem pagos convergem. Como a ortografia do contrato em português  está em franco desacordo com a ortografia vigente na década de 20 do século passado, tudo leva a crer que se trata de um contrato falsiê. No entanto, ao fazer o levantamento de algumas leis acerca da atividade docente publicadas no Brasil nos séculos XVIII, XIX e inícios do século XX, assim como, ao resgatar leituras pretéritas, posso afirmar que mesmo que o contrato seja falso, o seu espírito transporta a verdade. Ou seja, trata-se de um corpo falso movido por uma alma verdadeira. Freud já dizia "o inconsciente, às vezes, mente" e, se mente, mente sobre uma verdade encoberta. Vamos fazer, então, uma arqueologia da verdade encoberta por essa "Fake News"?


Como exemplos das cláusulas constantes da minuta contratual falseada e viralizada na Internet estão as de que as professoras, para o exercício da docência, estariam terminantemente proibidas de se casarem (como pude verificar ser procedente até o século XIX), de andarem em companhia de homens, de beberem, de fumarem ou de flanarem em sorveterias, um ambiente de coqueteria por excelência em inícios do século passado. Nos textos publicados em jornais de grande circulação no Brasil, como O Globo, e alhures, sobre o conteúdo do contrato, frisa-se o caráter machista de suas cláusulas. Sem dúvida. Mas, o que me encantou nesse contrato, sim, digo que me "encantou" e não que me causou assombro ou indignação, foi verificar como, através desse contrato-ficção, podemos constatar quão a prática docente que temos vivenciado nos últimos dez séculos foi preponderantemente prescrita pela Igreja cristã durante a Idade Média, e no que concerne ao ensino superior, a partir da Baixa Idade Média.


Prática essa, portanto, que foi, inicialmente, monopolizada pelos religiosos, integrando inextricavelmente os seus sacerdócios. Ao ser a prática docente permitida a leigos, quer fosse nas escolas paroquiais, quer fosse no ensino universitário inaugurado pela Universidade de Paris cuja direção era do bispado com intervenção papal, aqueles que se dispusessem a ser professores deveriam seguir, em vários aspectos, o mesmo modus vivendi dos religiosos. O celibato e a abstinência sexual eram alguns desses aspectos. Não há como não nos lembrarmos da história do filósofo Pedro Abelardo cuja amante Heloísa, resistia a com ele casar-se, ainda que estivesse grávida. O casamento era um descrédito para um professor, maculava a sua reputação. Mesmo em sendo esse professor, um leigo, haveria o mesmo que gozar da mesma estatura moral de um clérigo cuja vida deveria ser de entrega exclusiva ao aprofundamento de seus estudos, de alcance da sabedoria e de dedicação a seu alunado.


Ser professor ou professora, portanto, a partir da Idade Média, diversamente da cultura da Idade Clássica, passou a significar o exercício de uma função própria dos clérigos e a adesão a esse sacerdócio. É notório o monopólio da atividade educacional por irmandades e congregações religiosas até finais do século XX, tendo sido o primeiro professor de cultura ocidental em solo brasileiro, o Padre José de Anchieta. Colégios de padres e colégios de freiras foram máximas referências educacionais durante séculos. Não causa espécie, portanto, que mesmo as instituições de ensino laicas, incluindo as escolas públicas, estivessem imbuídas das prescrições comportamentais ditadas pelas escolas de ensino de tradição cristã, fossem católicas ou protestantes. Esse caráter sacerdotal emprestado  ao ensino, talvez nos ajude, também, a compreender a histórica baixa remuneração da atividade docente em países como o Brasil, afinal, uma vez que integra um "sacerdócio", entende-se que o seu caráter dadivoso, traduzido por extremosa doação e  obstinado sacrifício, seja indissociável à prática do ensino.


Quanto a aquilatar o quão machista são as cláusulas constantes da minuta, sendo que muitas estavam em real acordo com os costumes daqueles tempos, o melhor seria cotejá-las com as cláusulas de um modelo de contrato a ser celebrado com os professores na mesma época. Muito provavelmente, concluiremos que as normas impostas às moças eram bem mais restritivas e limitantes do que aquelas destinadas aos rapazes, uma vez que, historicamente, temos estado agrilhoados a um modelo patriarcal onde a desigualdade de gênero é assaz eloquente. No entanto posso já adiantar que aos homens era terminantemente proibido serem professores de meninas com idade de até 14 anos. 


Logo, no que tange às cláusulas da minuta em comento e às leis e costumes dos séculos XX e anteriores, penso que a tradição de ensino fundada pelas instituições cristãs a partir da Idade Média, emprestando a esse ofício um caráter fortemente sacerdotal, é a que maior influência exerce em seus contornos e fala mais alto. Mais do que o seu incontroverso caráter "machista". Pois, lembremo-nos que o professor Pedro Abelardo, citado acima, ao haver engravidado uma aluna e casado-se com ela, agindo em total desconformidade com o que se esperava do comportamento de um professor, foi violentamente emasculado. E morreu eunuco.

domingo, 20 de fevereiro de 2022

 "TODO O MAL TEM A SUA ORIGEM NA COBIÇA CARNAL, INSACIÁVEL DAS MULHERES".


Historicamente, a fim de controlar-se a sexualidade feminina e o seu imaginado, idealizado, temido e invejado gozo irrefreável, foram criados mecanismos e artefatos a serem aplicados por seus próprios maridos, amantes e companheiros. O cinto de castidade e a internação em Casas de Recolhimento foram de uso "corrente" e recorrente. E se não bastasse a violência contra a mulher legitimamente institucionalizada, tal como previa o Título 38 do Livro V das Ordenações Filipinas, vigentes do séc. XVII ao séc. XIX no Brasil, autorizando ao marido que suspeitasse da traição sexual, que a matasse, espírito legal até hoje em vigor, havia uma outra de igual perversão e legitimidade social. Era aquela violência que sangrava o corpo e a alma da mulher na hipótese de a mesma demonstrar prazer sexual, mesmo com o seu marido, mesmo com aquele que a seduziu. Essa pena, quando corporal, poderia fustigá-la até a morte. A punição, eivada de crueldade, ódio e inclemência, aplicada à mulher por ser um ser desejante, apropriada de seu corpo e de seu prazer, continua em pleno vigor. E quem a aplica é o próprio ser que ela desejou.




quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022


ARQUEOLOGIA DAS AUTORIAS




A Operação Leviatã, a das operações deflagradas pela Polícia Federal, recebeu essa alcunha em razão de ter por um de seus investigados, um filho de Edison Lobão. Como o filósofo inglês Thomas Hobbes divulgou em sua obra a sentença "O homem é o 'lobo' do homem" e sendo a sua obra mais conhecida, "Leviatã", alcunhou-se a operação de "Leviatã", remetendo o sobrenome Lobão ao "lobo" de Hobbes. Ocorre que essa frase "O homem é o lobo do homem", apesar de ter sido popularizada por Hobbes, não é de sua autoria, e sim do romano Plautus, sendo sua a frase original em latim "Homo homini lupus". Da mesma forma, a famosa sentença "Conhece-te a ti mesmo", em latim, "Nosce te ipsum", não é de autoria de Sócrates, mas sim, difundida por Sócrates, através de Platão, como uma das bases de seu pensamento, após o grande mestre, Sócrates, havê-la lido estampada no Templo de Delfos. E a celebrada  frase "Não concordo com nenhuma palavra do que dizes, mas defenderei até a morte o teu direito de dizê-las" atribuída a Voltaire? Não é de  autoria de Voltaire, mas sim, uma frase construída por uma biógrafa sua, a fim de, com ela, resumir o pensamento do filósofo quanto à liberdade de expressão. E quem nunca ouviu a frase "Os fins justificam os meios" de Maquiavel? A frase é essa mesma, só o que ocorre é que Maquiavel nunca a escreveu ou a pronunciou, trata-se, tão somente, de uma sentença elaborada pelos estudiosos da obra de Maquiavel para expressar o seu pensamento "maquiavélico"...rs. Last but not least, "Ser ou não ser, eis a questão" é mesmo de Shakespeare, apesar de haver muita gente que defende que Shakespeare, em verdade, nunca existiu...rs

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022



 Além de ter sido o maior expoente da Escola do Recife, Tobias Barreto, também, era poeta. Foi patrono de uma cadeira da Academia Brasileira de Letras, a de número 38. Sílvio Romero, outro expoente dessa Escola, considerava-o um escritor superior a... Machado de Assis! As altercações poéticas feitas entre Tobias Barreto e Castro Alves tendo por arena o Teatro de Santa Isabel em disputa do amor da atriz Eugênia Câmara  foram uns dos maiores registros de nossa literatura oral. Aqui trago um poema tobiático que a meu ver resvala não apenas em um eventual ateísmo do filósofo Tobias Barreto, mas na desconstrução de um modelo político, mais do que nunca, ainda vigente.


A ESCRAVIDÃO (TOBIAS BARRETO)


Se Deus é quem deixa o mundo 

Sob o peso que o oprime, 

Se ele consente esse crime, 

Que se chama a escravidão, 

Para fazer homens livres, 

Para arrancá-los do abismo, 

Existe um patriotismo 

Maior que a religião. 


Se não lhe importa o escravo 

Que a seus pés queixas deponha, 

Cobrindo assim de vergonha 

A face dos anjos seus, 

Em seu delírio inefável, 

Praticando a caridade, 

Nesta hora a mocidade 

Corrige o erro de Deus!...

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Aos Estudantes de Direito

 AOS ESTUDANTES DE DIREITO





O curso de Direito, salvo melhor juízo, é o único, ao menos no Brasil, no qual você se forma e é nada...Bem, não sejamos tão trágicos, você se forma e é um bacharel em direito que não pode exercer nenhuma das funções jurídicas, você está na mesma situação de um bacharel em história ou em geografia, a diferença é que você tem a legitimidade de ser examinado a fim de que possa provar, ou não, que está apto para ser um advogado, um juiz, um promotor, um professor, um procurador... 

Ao se formar em medicina, você é um médico, ao se formar em arquitetura, você é um arquiteto, ao se formar em engenharia você é um engenheiro, ao se formar em direito... Você é um Bacharel! Quero aqui, desde já, firmar a minha posição de que não sou contra o Exame da OAB, para o exercício da advocacia, muito pelo contrário, até porque o curso não é um Curso Superior de Advocacia, mas um curso de Bacharelado em Direito. O que pretendo é lembrar que, diversamente, do que diz o senso comum e a palavra corrente: "milhares de advogados se formam ao ano no Brasil, aonde é que vamos parar?". A realidade é que milhares de bacharéis em direito se formam ao ano no Brasil, mas para que venham a exercer a profissão terão que passar por testes afuniladíssimos e serão poucos os que exercerão de fato a profissão. 

Comecemos pela advocacia, tantas vezes menosprezada como carreira pelos próprios estudantes. O menosprezo só termina, quando, ao fazer a prova da OAB, vê-se que não é tão fácil assim demonstrar estar habilitado para esse tão difícil mister. Culpa das Faculdades? O curso de direito é um dos cursos mais baratos para as instituições de ensino superior, não exige laboratórios com os custos de um curso de medicina, odontologia ou biologia...Mas exige, muito, muito esforço pessoal e naquilo que, em nosa cultura, é muito pouco exercitado: o exercício da leitura e da escrita. Uma  ex-diretora da Faculdade de Direito do Recife da UFPE, certa feita, atribuiu a classificação de primeiro lugar no ranking dessa faculdade no Estado de Pernambuco, em razão da dedicação de seus alunos. Mas, voltando ao exercício da advocacia, tão pouco valorizada por boa parte dos alunos. A valorização da função se inicia com a dificuldade em se passar no Exame de Ordem e, uma vez superada a prova, constata-se que o seu exercício é dificílimo. Ousaria dizer que a advocacia é a função jurídica que requer mais habilidade do profissional do direito: fluidez na escrita e na expressão oral, poder de argumentação e persuasão, capacidade de interpretação hermenêutica, habilidade de fazer pesquisas e desenvolver teses, atualização permanente na área do direito escolhida e, acima de tudo: incansável empreededorialismo. 

O advogado não tem hora para começar e nem para acabar o seu trabalho, deve estar, ao máximo, disponível para atender aos reclames de seus clientes, disposto para lutar por seus direitos e embrenhar-se pelos corredores e gabinetes dos Fóruns e Tribunais para atingir esse mister. Enfim, o advogado é um guerreiro que deve estar sempre disposto para a luta, para o embate ou para a conciliação. Quantos prosperam? Há, por acaso, um escritório de advocacia a cada esquina? E, desses, quais conseguem, realmente, firmarem-se na profissão? Ah, a advocacia, é para poucos, de fato e, aí, restam as funções jurídicas públicas. No entanto, para, também, vir a exercê-las, deverá estar-se preparado para esforços hercúleos de estudo, para renúncias de lazer e de convivência com as pessoas queridas que, no entanto, são de apoio fundamental para a disciplina que se exige daquele que pretenda passar em um concurso de juiz, promotor ou procurador. Quantos passam? De cada turma de bacharéis em direito, quantos vêm a exercer essas funções? Sem falar que, não poucas vezes, as vagas, sequer, são preenchidas, ficam vacantes, à espera de candidatos que preencham os requisitos necessários para cada uma dessas  funções. A máquina pública não faz a menor questão de ter menos profissionais necessários para que ela desempenhe eficazmente as suas atribuições jurídicas, desde que provem as suas proficiências. Por fim, temos a carreira acadêmica em Direito, essa também, tão desvalorizada por grande parte dos alunos que não se cansam de nos perguntar:"professor(a), o sr.(a), também, trabalha?". 

Ao se formarem, novamente, vem a valorização da prática docente, ao constatarem, que, se se formam cerca de centenas de bacharéis em direito por ano no Estado de Pernambuco, temos, por exemplo, em Recife, apenas três cursos de Mestrado que selecionam cerca de vinte bacharéis por ano. Doutorado? Apenas dois em todo o Estado com cerca de 20 vagas. As seleções para mestrado e doutorado são rigorosíssimas e dentre todos os demais concursos da carreira jurídica é o que tem o menor número de vagas. Não é à toa que os nossos colegas são os mesmos em várias Faculdades de Direito. A carreira acadêmica exige dedicação permanente ao estudo, a produção científica qualificada, a atualização constante e a disposição para falar em público diuturnamente durante as aulas. 

Por que estou escrevendo tudo isso? Porque estamos no início de mais um ano letivo que nos exigirá, a todos, professores e alunos a dedicação e a seriedade necessárias para que atinjamos os nossos objetivos. Porque o Governo Federal cortou a verba para vários concursos públicos e as vagas para outras áreas tais como engenharia, arquitetura e informática crescem geometricamente. Logo, principalmente, para meus queridos alunos, esse é um momento de reflexão. Um momento de indagação ao mais profundo de seus seres sobre a razão de estarem fazendo o curso de direito, um momento de indagação sobre as suas próprias vocações, dons e habilidades. A conscientização que o caminho do direito é árduo e, extremamente, seletivo.

Não se trata de passar por média nas disciplinas, se trata de preparar-se para estar apto em exercer uma profissão que nos exige grande dedicação e uma série de habilidades. Trata-se de um curso no qual, após as suas formaturas vocês serão bacharéis, mas, ainda, não estarão habilitados a exercerem a profissão e, caso, queiram exercê-la em quaisquer das áreas, o que terão, após o dia da colação de grau, será um grande campo de batalha pela frente. 

Você se considera um soldado? Está pronto para essa Luta? Tem consciência do que o espera? Está imbuído pela paixão pelo direito e pela justiça? Se a resposta for sim, demo-nos, fortemente, as mãos, percorramos, juntos esse caminho. Pois, para os que estão dispostos e determinados, não importam os percalços e os obstáculos, as bandeiras já estão em suas mãos. Venham! Vamos juntos fincá-las na vitória!


quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

 PADRES E PECADORAS NO BRASIL-COLÔNIA 

(Algumas perguntas objetivas constantes dos Manuais de Confessores da época. Ao final cito algumas das penitências...)


Se pecou com tocamentos desonestos consigo ou com outrem.

Se tem retratos, prendas ou memórias de quem ama lascivamente.

Se solicitou para pecar com cartas, retratos ou dádivas.

Se foi medianeira para isso gente maligna que devia ser sepultada viva.

Se falou palavras torpes com ânimo lascivo.

Se se ornou com ânimo de provocar a outrem a luxúria em comum ou em particular.

Se fez jogos de abraços ou outros semelhantes desonestos.

Se teve gosto e complacência dos pecados passados ou de sonhos torpes.


Penitência 1: Em 1792 um vigário, em Goiás, após a escuta dos "pecados" de uma moça, atracou-se com ela com tão cega fúria que lhe rasgou a saia. Tendo sido surpreendido, justificou-se dizendo que "aquela mulher  vivia com muita lassidão nos costumes contra a castidade".


Penitência 2: Na mesma época, um outro sacerdote, ao ouvir uma confissão, propôs como penitência: "Pois, assim como vós cometeis adultério com homem casado, também podeis o fazer comigo". 


Por fim, apenas para mostrar que, apesar de todas as interdições, as mulheres transgrediam a ordem do Manual e muitos padres se constrangiam com essas recorrentes pecadoras, eis a fala desse padre em 1759...


:


"Graças a Deus que já me livrei das mulheres desse curato, porque todas pecam contra a castidade e, assim me vejo já livre de as confessar"...


Bem, certamente, todas as mulheres que aqui responderem às perguntas do Manual, provarão estarem livres de pecado...

                                                  "O mais era morte e apenas morte" 

    Do Ajuizamento de Ação Penal na Argentina pelo Desaparecimento do poeta Federico García Lorca na Espanha.

                                                                                                                                   
  Andrea Almeida Campos 







A que horas fechou os olhos para o mundo o poeta andaluz? Qual granada fez escorrer os despojos de seu corpo? Onde desencavar a dor de sua morte já prevenida? O grande poeta espanhol Federico García Lorca foi cruelmente assassinado por tropas franquistas em uma madrugada do ano de 1936. Foi covardemente assaltado no aconchego de seu lar enquanto dormia, tendo sido levado por oficiais  a um terreno baldio. Ali, dispararam-lhe tiros de baioneta no ânus. Federico, além de fazer oposição ao regime do General Franco, era homossexual.

Em que local ceifaram-lhe a vida? Onde foi enterrado o seu corpo? Quem foram os seus algozes? A literatura faz ilações e tenta compreender o incompreensível, mas é ao Direito que cabe dar uma solução justa ao injusto. O Direito, esse sistema criado pelos controversos humanos para a  solução pacífica das controvérsias. Enfatiza-se muito o seu caráter pacífico, mas o sentimento de justiça, não apenas reclama pela paz, reclama por uma solução justa em face de uma violação. E quanto maior a ferida deixada por essa violação, mais protegido será o bem jurídico violado, tanto materialmente, quanto processualmente. É o que ocorre com as violações em massa do direito à vida como no holocausto, é o que ocorre nos crimes praticados contra milhares de pessoas durante regimes ditatoriais. Essas violações são tipificadas como crimes contra a humanidade e por serem as vítimas todos nós, humanos, independente de origem, etnia e credo,  por termos sido nós os violados na alma tanto quanto aquele que foi violado na carne, a esses crimes caberá a denominada "Jurisdição Universal", também chamada de "autdeereautpunire". Ou seja, a persecução penal referente aos mesmos, poderá ser iniciada em qualquer jurisdição do mundo, independentemente do local onde tenha ocorrido a ação ou o resultado do ilícito, independente do país de nacionalidade do autor ou da vítima.

Por óbvio que, nesses casos, os procedimentos processuais atingem máxima complexidade, esbarrando em óbices, muitas vezes tidos como incontornáveis para a sua consecução. Basta atentarmos para as dificuldades de produção probatória, citação e intimação dos réus, homologação da sentença estrangeira. No entanto, o que mais mobiliza o jurisdicionado e os que se debruçam sobre o tema, não é apenas os entraves para os atos processuais, facilitados por um mundo cada vez mais globalizado e interconectado, mas sim, o fato de que a Jurisdição Universal pretende se legitimar e se fazer valer perante ao princípio mais caro a todas as Nações: as suas Soberanias. Portanto, para tecer considerações acerca do tema, mormente no que tange à barbárie do que foi o assassinato do poeta andaluz, Federico García Lorca, chamo ao meu auxílio, um outro poeta, também ibérico, mas português: Luiz Vaz de Camões. É ele quem nos diz "Cesse tudo o que a antiga musa canta/ Que outro valor maior se alevanta". Municiados por Camões, sigamos.

O projeto “The Princeton Principles on Universal Jurisdiction” define a Jurisdição Universal, também denominada de "competência repressiva universal", como  “uma jurisdição baseada apenas na natureza do crime” - jurisdição esta que poderia ser utilizada pelas Cortes nacionais para processar e punir, e assim desencorajar os atos hediondos reconhecidos como crimes graves sob o direito internacional. A internacionalista Renata R. Fasano (2011) nos informa ser a Jurisdição Universal  “a possibilidade de tribunais nacionais julgarem, independentemente da existência dos vínculos tradicionais do direito penal, do princípio da territorialidade, da nacionalidade e da proteção dos indivíduos acusados do cometimento de crimes internacionais que remetem às graves violações de direitos humanos.

Mas, o que, juridicamente, poderia ser entendido por "universal"? A universalidade estaria vinculada à própria natureza dos crimes em face dos quais, qualquer Estado poderia lançar mão da prerrogativa de jurisdição universal. Logo, a jurisdição universal não se aplica a todo e qualquer crime, por mais bárbaro que este possa nos parecer, mas, tão apenas, a uma categoria específica de crimes internacionais. O interesse de exercer essa prerrogativa seria de todo e qualquer Estado que se sentisse ofendido e agredido por aquele fato criminoso que ele mesmo abomina e condena universalmente. A ampliação da competência estatal seria uma forma de ampliação, também, da proteção à comunidade internacional. Lembrando o imenso jurista italiano Piero Calamandrei (apud TOURINHO FILHO, 2011) que nos ensina que "ante a ausência de um poder supraestatal capaz de impor com a força as próprias decisões aos Estados, a extrema ratio para resolver os conflitos é a guerra". A Jurisdição Universal, no entanto, tenta resolver e sanar a ferida causada pela violação de direitos, não através de um órgão supraestatal, mas outorgando competência universal aos tribunais estatais.

Apesar de o tema não ser tão recorrente em nossa história de seres legislados, e ainda bem por isso, já que a Jurisdição Universal se aplica a tragédias e barbáries específicas, o fato é de que não há nada de muito novo sobre a terra no que se refere a ela, bastando-nos lembrarmo-nos do caso de Eichmann que foi julgado em Israel por crimes cometidos na Alemanha contra os Judeus. Claro que nesse caso, maior estranhamento jurídico não ocorre já que o Estado de Israel,  seria o Estado do povo judaico, não importando onde os integrantes desse povo teria nascido, vivido e sido vitimizado. O que consideraríamos como maior precedende para a Jurisdição Universal seria o "Caso Pinochet", ajuizado por tribunal espanhol. Vejamos, o que nos informa Leonardo Bandarra (2014):


Em 1996, o juiz espanhol Baltasar Garzón recebeu uma denúncia apresentada pela Unión Progresista de Fiscales de España contra Pinochet “por seu envolvimento no desaparecimento de cidadãos espanhóis na Argentina e no Chile, que remetiam à Operação Condor”, denúncia a qual foram agregados crimes de tortura, terrorismo e genocídio. Incorporaram-se também posteriormente ao caso, pela via do actio popullaris (ação popular) do direito espanhol outros cidadãos e entidades (como a Fundação Salvador Allende). Ademais foi confirmada, a partir do princípio da universalidade, a competência ao tribunal para julgar o caso. Dessa forma, configurou-se um caso de aplicação do conceito da jurisdição universal, dada a natureza dos crimes aos quais se acusava o então ex-chefe de Estado, ou seja, crimes de natureza jus congens. Por esses motivos, embora tenha contribuído para legitimar os procedimentos jurídicos espanhóis para o caso, a nacionalidade espanhola das vítimas não se fazia juridicamente necessária para o aceite do caso por Garzón.  Cabe salientar, ainda, que tal aplicação do conceito de jurisdição universal por um tribunal nacional para julgar crimes considerados como “graves violações” ou  contra a humanidade cometidos por um individuo estrangeiro em território também estrangeiro não foi inédito, pois, apesar da existência do precedente do caso Israel vs. Eichmann, no qual o ex-general nazista foi condenado em Israel por crimes cometidos durante o holocausto,o caso Pinochet inovou ao ter como réu um ex-chefe de Estado, que, portanto, gozaria dos privilégios de imunidade pelos atos cometidos.


Baltazar Garzón, atua, hoje, junto ao Ministério Público do Tribunal Penal Internacional e quando era juiz de instrução determinou a feitura de diligências de modo que fossem determinadas as localidades de fossas coletivas, a fim de encontrar a fossa na qual estariam os despojos de Federico García Lorca. A providência tomada por Garzón estava alicerçada no fato de o desaparecimento forçado, no direito brasileiro denominado de sequestro de pessoas, estar tipificado no rol de crimes contra a humanidade, de efeito permanente e ser, segundo a jurisprudência do Tribunal Penal Internacional, da Corte Europeia de Direitos Humanos e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, imprescritível. Garzón foi afastado de suas funções por conflito positivo de competência e o mandado não foi levado a termo. Mas eis que em agosto do ano de 2015, nós amantes da poesia e do direito fomos surpreendidos pela notícia de que uma  associação de vítimas do franquismo anunciara  que denunciaria a morte (pra nós imorredoura) de  Federico García Lorca, fuzilado nos primeiros dias da Guerra Civil Espanhola, perante a juíza argentina que investiga os crimes da ditadura franquista. Eis o comunicado:  "A Associação para a Recuperação da Memória Histórica (ARMH) apresentará uma denúncia pelo desaparecimento do poeta Federico García Lorca ante a juíza argentina Maria Servini de Cubria". Pelo comunicado, inferimos que no direito argentino há uma prática que refoge ao nosso Princípio do Juiz Natural, pois de forma alguma poderíamos ajuizar uma ação perante um juiz, previamente, determinado. Prima Facie, o que me parece é que o Juiz teria competência não apenas de Estado Juiz, mas também, de Estado Administração, exercendo o que para nós é atribuição exclusiva do Ministério público. Mas, o fato é que a juíza Servini de Cubria tem um histórico de atuação, valendo-se da Jurisdição Universal. Em 2010, a mesma abriu um inquérito (no direito brasileiro, o juiz não teria essa competência, apenas a Polícia Judiciária e o Ministério Público) em face dos crimes cometidos durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e durante a ditadura do General Francisco Franco (1939-1975). Cubria ordenou, ao final de 2013, a abertura de todos os consulados argentinos no mundo para atender as vítimas do franquismo. Em maio de 2014, como uma saudada da lei, viajou para a Espanha a fim de se encontrar com algumas vítimas que, em razão de suas idades avançadas ou estados de saúde, estariam impedidas de viajarem à Argentina. Ou seja, a juíza foi ouvir as partes interessadas in locu.

Quanto às investigações em torno do local onde estaria enterrado o poeta Federico García Lorca, várias escavações foram realizadas nas cercanias de Granada, a cidade onde morava o poeta ao sul da Espanha e onde foi cometida a barbárie. Apesar dos esforços, não foram, até hoje, encontrados os seus restos mortais.

Há alguns anos, foi descoberto um documento no qual o regime de Franco teria reconhecido o crime que cometera contra Lorca. No comunicado da Associação ainda consta: "A ARMH solicitará à juíza que exija do governo da Espanha qualquer documentação semelhante que possa indicar o paradeiro de pessoas desaparecidas e esclarecer os fatos que levaram à sua detenção ilegal e subsequente morte".

Mas o que levou as vítimas espanholas a recorrerem à Justiça Argentina? A resposta é o fato de haver sido promulgada na Espanha em 1977, a Lei da Anistia quanto às práticas da ditadura franquista. Esta Lei foi promulgada no momento de transição da ditadura para a democracia. A meu ver aqui reside o um dos grandes desafios do caso frente à Jurisdição Universal: O crime continua a ser imprescritível, mesmo quando o Estado no qual o mesmo foi cometido perdoou o agressor? Poderá esse Estado homologar sentença estrangeira de decisão que ordena a condenação de alguém por um crime já perdoado por esse Estado? No que concerne ao processo penal, mais questões nos assolam: Os prováveis algozes ainda estão vivos? Ao menos pelo direito brasileiro, pessoas jurídicas, salvo em casos de crimes ambientais, não podem responder criminalmente, portanto, na falta de um réu que fosse pessoa física viva, frustrada estaria a Ação Penal. A única possibilidade seria uma Ação Civil de Reparação de danos no qual o Estado Espanhol respondesse objetivamente, já que não poderia aduzir que ao tempo do dano, o Estado vigente era o de exceção.

O processo ainda não foi concluído. Deixemos que a jurisprudência nos conte o final dessa história. Quanto a nós, resta chorarmos, eternamente, enquanto os abutres cantam, a morte trágica do poeta e, tal qual Antígona, rogarmos que um dia, em uma hora, qualquer hora que seja, ele tenha um lugar que possa ser chamado de sua sepultura .Que seja feito o seu enterro a qualquer hora, contanto que seja feito, talvez, às cinco horas da tarde:

Às cinco horas da tarde.
Eram cinco da tarde em ponto.
Um menino trouxe o lençol branco
às cinco horas da tarde.
Um cesto de cal já prevenida
às cinco horas da tarde.
O mais era morte e apenas morte
às cinco horas da tarde.


Federico García Lorca

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

 PATRIARCADO E A MULHER TRABALHADORA.



Qual o impacto do modelo patriarcal para o mundo da mulher trabalhadora? 

Em um lugar, topologicamente oposto, a emancipação e exercício de poder pelas mulheres da nobreza nos regimes monárquicos, historicamente, deu-se, de modo mais igualitário aos homens, herdeiros da coroa. E não que isso decomponha o modelo patriarcal, mas, certamente, presta uma certa feição matriarcal ao regime. Mutatis mutandis, ou seja, por fatores outros, esse modelo  claudica ao se tratar das mulheres pobres das classes trabalhadoras. 

Uma das razões reside no fato de que os homens dessas classes, geralmente, fracassam em se adequar ao modelo do homem do patriarcado: Mantenedor, provedor, detentor de propriedade privada e, portanto, controlador da mulher que dele depende materialmente e a ele se submete e subalterniza (ou seja, a escolha entre ser assujeitada pela dependência econômica e ser autônoma ao envidar por si mesma a luta pela vida sempre foi uma possibilidade maior para as mulheres das classes inferiores). Logo, por estarem de igual pra igual com os homens na luta pela sobrevivência, não poucas vezes com melhores ganhos e até sustentando-os, a mulher trabalhadora historicamente enfrentou as mazelas do patriarcado de forma mais altiva e desafiadora do que as mulheres das classes intermédias e superiores. Infelizmente, não sem experimentarem os efeitos perversos desse exercício de força, cujo principal sempre foi a violência de seus companheiros contra elas, pela frustração de  não conseguirem acumular capital e ocuparem o lugar do masculino no patriarcado. 

Ou seja, subalternizada ou emancipada, dentro ou fora do patriarcado, mas tendo-o por referência, a violência contra a mulher é democrática, atingindo, historicamente, a todas. Um dado é que, ao analisarmos processos judiciais, vemos que as mulheres trabalhadoras apanham dos companheiros, mas também batem muito. São mortas por eles, mas também os matam. Vingam-se e vingam.

*

Tela: "Colonas" de Di Cavalcanti.

domingo, 6 de fevereiro de 2022

 AMOR ESTRANHO AMOR





No filme de 1982, dirigido por Walter Hugo Khouri, Amor Estranho Amor, estrelado pela então modelo, Xuxa Meneghel e grande elenco, houve abuso sexual contra um menor de 12 anos de idade?

Essa questão é extremamente delicada, pois traz à lume várias discussões... O filme foi produzido na época da ditadura (fins da década de 70), quando  a mídia sofria imensa censura e os cineastas apenas tinham a liberdade de se expressarem, principalmente, através da pornografia, pois, essa não era censurada, daí dizer-se que esta foi a época das "pornochanchadas". 

O roteiro do filme gira em torno do golpe de 1937 (dado por Getúlio Vargas que já estava no poder desde 1930), instaurando-se o Estado Novo, quando então, ele outogou a CF de 1937, colocando abaixo a ordem democrática anterior (a de 1934). 

O filme foca na oposicão à Getúlio, mas, a todo o tempo, subliminarmente, o nome de Getúlio, sequer, é citado e só quem conhece um pouco da história do Brasil, identifica a problemática política na qual transcorre o filme. 

Enquanto isso, o personagem representado por um menino sofre todo tipo de abuso e violência sexual, inclusive, presenciando cenas de sexo da própria mãe e, depois, mantendo relações sexuais com ela.

O menino, provavelmente, representaria uma democracia incipiente e, constantemente violada, violentada. O diretor pode ter escolhido a violência sexual contra o menino para retratar a violência  da ditadura. Ocorre que, naquela época não havia nenhum tipo de proteção ao menor, não é como hoje em que vivemos um período "democrático" e já houve, há alguns anos, uma CPI da pedofilia. 

Xuxa faz o papel da prostituta que inicia, sexualmente, o menino, com cenas explícitas de sexo com ela, o que é tipificado como estupro de vulnerável. Na época ela já era uma mulher de 20 anos e aceitou o papel como tantas outras aceitaram fazer cenas de sexo com o menino e, continuaram, normalmente, as suas carreiras de atrizes, como Vera Fischer. 

Hoje, dificilmente, a gravação dessas cenas seria permitida. O que ocorre é que a indústria televisiva a escolheu para comandar programas de crianças e a moldaram como a fada azul sonhada pelos "baixinhos". Ela aceitou e ficou riquíssima, milionária com isso,  a fórmula deu realmente certo. 

A partir disso, podemos constatar como a TV e o cinema são máquinas,não apenas fazedoras de sonho, mas de perfis de pessoas; pessoas-avatares  que o público quer ver, sonhar com elas e acreditar que as mesmas são o que elas não são de fato... 

Escolher o maior símbolo sexual daquele tempo, habituée das páginas da Playboy, de filme porno-erótico e de fotos provocantes para ser a "rainha dos Baixinhos", foi, no mínimo, perverso com as crianças. Pessoas que trabalhavam na TV Manchete (emissora que a lançou como apresentadora de programa infantil) à época, disseram que a escolha por Xuxa deveu-se, justamente, ao seu apelo sexual e à sua performance nas cenas de relação sexual com o menino no filme, pois com meninos excitados, descobrindo o onanismo, e meninas libidinizadas, o sucesso seria garantido, as crianças com as suas sexualidades, precocemente, estimuladas, não sairiam da frente da TV... Freud deve ter se revirado no túmulo com uma dessa...

Questiona-se se Xuxa teria sido uma violadora de crianças, uma vez que, à época, ela não tinha esse senso crítico...Mas, ao assumir o papel da "fada-Azul", o que, certamente, ela não é, a sua situação, se tornou deveras delicada por ter encenado esse filme. E, inicialmente, não no Basil, já que aqui, ninguém estava atento para os direitos das crianças, mas, acentuadamente, no exterior. Tanto que este foi um fator de sua carreira não ter deslanchado alhures... 

O que fazer??? O estrago já havia sido feito... Restaria assumir as circunstâncias da época e colocar a carreira para frente, se não apenas ela, mas outras indústrias, não corressem o risco de verem um grande império de dinheiro e ilusões desmoronarem... 

Então, o que está sendo feito? O filme foi proibido de circular, os "posts" da internet são retirados e até o Google foi processado por ela. Algo como se Marlon Brando não quisesse ter o seu nome associado nas buscas da Internet à máfia, por ter feito "O Poderoso Chefão", ou como se Schwazenegger proibisse a circulação de seus filmes de violência, já que se tornou político e prega a paz...Ou seja, em prol da manutenção de ganhos de milhões e milhões de dólares, o Estado de Direito com a sua liberdade de expressão é ferido, instalando-se um "show da Ditadura Xuxa", paradoxalmente, ditadura que era combatida, mesmo que de forma execrável e equivocada, pelo filme que ela não deixa circular, assumindo as suas próprias circunstâncias.

Quanto ao menino,  a violência sexual infantil, geralmente leva às drogas, à prostituição e ao suicídio (ou aos filmes pornôs)... E já houve murmúrios de que, na idade adulta, o ator teria ficado desestruturado.

Atualmente, o canal de streaming, GloboPlay, produz um programa especial sobre a vida e a carreira de Xuxa Meneghel. O, então, menino foi convidado  para ficar face a face com a sua parceira de cena, eventual abusadora em sua infância a quem ele sempre elogia e retira quaisquer responsabilidades de abusos contra ele nas entrevistas que concede na mídia.

O objetivo é elidir  todo e qualquer indício de que a então criança tenha ficado com quaisquer sequelas psicológicas em razão das cenas de sexo com ela protagonizadas.

A Rainha dos Baixinhos não pode perder o seu cetro. E nem a indústria à sua volta, incluída a TV Globo, ainda mais em tempos de crise,  perder  milhões. 

Quanto à Maria da Graça Xuxa Meneghel, esta, por toda a vida, terá que lidar com este trágico em sua existência: O que a alçou às estrelas está, a todo o tempo, ameaçando lançá-la ao abismo.

  QUE TAL ESCREVERMOS A NOSSA HISTÓRIA COMO ELA FOI, NO GÊNERO FEMININO, E PROCLAMARMOS A FALÊNCIA DO MODELO MASCULINO MONTADO EM   CAVALOS E CONGÊNERES E EMPUNHANDO ARMAS?





7 de SETEMBRO: Dia de celebrarmos Dona LEOPOLDINA!


Dona Leopoldina era, antes de tudo, uma acreditada diplomática dos Habsburgos. A sua missão era a expansão do poder de sua família para baixo da linha do Equador. A crise política pela qual passava o Brasil poderia levar à retalhação de seu território com a formação de várias Repúblicas independentes, como ocorria com o restante da América Latina, o que não atendia aos interesses do Império Austríaco. Por sua vez, Leopoldina uma poliglota que rapidamente aprendeu a falar e escrever o português, sentia-se irmanada com a causa e o povo brasileiro.


 Leopoldina foi talhada e esmeradamente educada para suas missões políticas de Embaixadora. Por isso agiu adequadamente e rápido, reunindo o Conselho de Estado e decretando a separação do Brasil de Portugal no dia 02 de setembro de 1822, tudo de acordo  com a sua genuína simpatia com a causa brasileira e os interesses que representava. 


Já Dom Pedro... Diante dos atos assinados por Leopoldina não teve escolha senão a de, espada em punho, proclamar a independência...

  MULHERES COMO PONTOS DE VIRADA NA HISTÓRIA





 1 E DEU-SE A REVOLUÇÃO...


Em outubro de 1879, já tendo ocorrido a queda da Bastilha, a Corte francesa continuava a se banquetear no Palácio de Versalhes e o evento de 14 de julho era para o "ancien régime" apenas mais um superável incidente. Mas, não superado para um grupo de 6.000 mulheres analfabetas, donas de casa e trabalhadoras de mercados e açougues, que revoltadas com os preços dos alimentos e a carestia, marcharam furiosas, embaixo de chuva, rumo a Versalhes. Empunhando seus facões, machados e lanças, invadiram e destruíram os aposentos da Rainha, decapitaram os vigilantes, forçaram a volta da família real para o Louvre e fizeram a REVOLUÇÃO FRANCESA de fato, acontecer. Insuperavelmente.


Ainda que as mulheres sejam apagadas da história e na linguagem, REVOLUÇÃO é palavra FEMININA.


2 E DEU-SE A ANISTIA...


Transcorria o ano de 1975 no Brasil em plena  ditadura militar e apesar das guerrilhas, havia uma certa  acomodação dos movimentos sociais no Brasil. 

Mas esse estado de coisas mudou radicalmente quando a advogada e ativista, Therezinha Zerbini, fundou e presidiu o Movimento Feminino pela Anistia. Movimento devidamente legalizado e registrado, despertou, motivou e impulsionou outros movimentos, entidades, partidos políticos e a própria OAB, levando à criação do Comitê Brasileiro pela Anistia em 1978 e, finalmente à promulgação da LEI DA ANISTIA em 1979. 


Ainda que as mulheres sejam apagadas da história e na linguagem, ANISTIA é palavra FEMININA.


3 E DEU-SE A LIBERDADE...


D. Pedro I era reticente quanto à declaração da Independência do Brasil, mesmo sob a pressão de movimentos separatistas. Uma vez tendo o monarca viajado para São Paulo e Dona Leopoldina assumido a o Governo em sua ausência, a regente não teve dúvidas: Convocou o Conselho da Coroa e como sua Chefe, no dia 02 de setembro de 1822,  assinou o decreto separando o Brasil de Portugal. Chamou um mensageiro e o ordenou que levasse o decreto a D. Pedro I para que o referendasse. O mensageiro o encontrou no dia 7 de setembro nas margens do rio Ipiranga e diante do cerco emancipatório de Leopoldina, proclamou o documento já assinado pela Rainha.


Ainda que as mulheres sejam apagadas da história e na linguagem, INDEPENDÊNCIA é palavra FEMININA.


PARA QUE DESSES FATOS NUNCA MAIS SE ESQUEÇAM E QUE SE REGISTREM NA MEMÓRIA.


POR SER DE MÁXIMA JUSTIÇA.


CUMPRA-SE.

 A principal consequência de um PAI, PADRASTO, MÃE ou MADRASTA, ou os que lhes façam as vezes, PEDÓFILOS, é a de deixar os seus filhos ÓRFÃOS.


Diante da suspeita,


não se sabe se fundada ou infundada, de que um renomado cineasta tenha praticado estupro de vulnerável contra a filha adotiva de sua então esposa, encontrei no "Tratado de Direito Penal Alemão" do imenso FRANZ von LISZT, a denominação criminal dessa prática que a meu ver, por ferir uma relação de maternagem ou de paternagem, é extremamente adequada. O abusador não só violenta o corpo e a alma de sua indefesa vítima, mas, MAIS que TUDO a deixa desamparadamente ÓRFÃ.


 art. 174 (Código Penal Alemão) LIBIDINAGEM COM OFENSA DE CERTAS RELAÇÕES DE DEPENDÊNCIA.


 Aduz von Liszt: Nesta, como em outras matérias, o legislador equipara à violência o abuso de uma relação especial de confiança ou de poder que tolha ao ofendido a liberdade de determinar-se. Apesar do silêncio da Carolina, não faltam precedentes históricos. O Direito romano ulterior punia o tutor (C. 9, 10) que seduzia a pupila; iguais disposições encontram-se no Espelho da Suábia, 349, bem como na legislação alemã do período do Direito comum. A cominação das Constituições saxônias, 4o , 25, contra o carcereiro que dorme com a presa confiada à sua guarda foi muitas vezes imitada. O Allgemeines Landrecht prussiano, art. 1.028, menciona também os fâmulos. 


 A pena é a de reclusão de até 5 (cinco) anos.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

 Quando uma pessoa é vitimizada pela transgressão da Lei e desrespeito aos seus direitos, vitimizada está toda a Sociedade. E é sobre essa dinâmica que nos ensina o imenso penalista FRANCESCO CARRARA:


"Os homens, com efeito, vivem tranquilos em sociedade, na confiança de que os seus direitos se encontram protegidos contra as paixões dos maus, pela autoridade e pela lei penal. Uma ofensa que, a despeito de tal proteção, sobrevenha ao direito de alguém, é um relâmpago a revelar a impotência da proteção. Ao ouvir que, não obstante a proibição, perpetrou-se a ação proibida, sente cada um que as paixões más rompem o freio da lei, e duvida, com razão, da eficácia desse freio; e embora não veja atualmente diminuída a própria segurança, sente-se menos seguro, porque prevê que, quando uma paixão impulsione algum perverso a planejar contra ele ofensa semelhante, a lei repressiva não lhe será garantia suficiente, como não foi para o outro, já vítima do delito cometido". 


Francesco CARRARA in "Programa do Curso de Direito Criminal".




terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

 UM SONHO "SON" - IVAN TURGUÊNIEV. 1877. (OU POR UMA

GENEALOGIA DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER)


De forma surpreendentemente comovedora, Ivan Turguêniev, um dos gigantes da escritura russa do séc. XIX, junto a Dostoiévski, Tolstoi, Tchekhov, Pushkin e Gogol, narra em seu conto "Son" um tema inusitado para a segunda metade do séc. XIX. Um tema de difícil abordagem ainda hoje nos alvoreceres do séc.XXI. A tradução do título original "Son" para o português foi  "Um Sonho" (provavelmente porque foi traduzida da versão em Inglês "The Dream"), o que  torna a sua narrativa ainda mais surpreendente, uma vez que sequer podemos antever o ponto nevrálgico de seu enredo.  E esse ponto nevrálgico é dolorosamente feminino: Uma bela e elegante mulher casada, feliz em seu casamento, é estuprada por um de seus cortejadores. Desse estupro nasce-lhe um filho. Que viria a ser o seu único filho...


Abaixo, um trecho desse belo conto avassalador:


"Uma noite, ficou sozinha, pela primeira vez, pois seu esposo se deixara levar para um clube por um grupo de oficiais do mesmo regimento que o homem dos olhos cruéis… Primeiro, ela decidiu esperar a volta do companheiro; depois, vendo que demorava, mandou embora sua camareira e foi se deitar… De repente, viu-se invadida por uma estranha sensação de pavor e começou a tremer pelo corpo todo. Tivera a impressão de perceber um leve barulho atrás da parede, como um cão arranhando uma porta. Virou os olhos. Uma lamparina piscava no ângulo oposto; todas as paredes eram estofadas… Subitamente, o tecido se mexeu, se ergueu, se deslocou… E o homem de olhos cruéis pareceu sair da parede, todo vestido de preto!


Ela quis gritar, mas nenhum som saiu da garganta, paralisada pelo terror. O homem saltou sobre ela, como uma fera, e jogou-lhe alguma coisa sobre a cabeça, alguma coisa sufocante, pesada, de cor branca… Que se passou em seguida? Não me lembro mais… Não me lembro mais de nada! Parecia um assassinato… Quando a névoa se dissipou e eu… e minha amiga recobrou os sentidos, não havia mais ninguém na peça. Durante muito tempo, não teve forças para gritar… Enfim, soltou um berro estridente… e tudo se anuviou de novo…

...

Minha amiga se refugiou no campo, tornou-se mãe pela primeira vez… viveu alguns anos ainda com seu marido até a sua morte. Ele nunca soube de nada. Aliás, que poderia dizer-lhe? Ela mesma ignorava tudo…


Mas eles não saborearam nunca mais a felicidade de antes: um peso inexplicável, uma tristeza sem nome assombrava sua existência… não tiveram outros filhos… e esse filho…”