quinta-feira, 19 de novembro de 2015

            Da Responsabilidade Civil do Estado - O Caso do Rompimento da Barragem do Fundão no município de Mariana - MG
                                                                                                                                      Andrea Campos
(Professora de Direito da Universidade Católica de Pernambuco)



Apesar de ser uma matéria francamente debatida na doutrina, na lei e na jurisprudência,  ainda causa estranhamento a questão referente à responsabilidade civil do Estado. Em um primeiro momento apostaria na tese de que nos é muitas vezes incabível nos posicionarmos de encontro ao "Grande Pai", o Estado. o Direito Romano, direito baseado no pátrio poder, alicerçado no pater familias não a consagrava. Por consequência, originariamente, preponderava o princípio da irresponsabilidade do Estado já que "sovereign can do no wrong", em outras palavras: o pai não é passível de erro. Como nos ensina Celso Antônio Bandeira de Mello (apud STOCO, 2013), a responsabilidade civil do Estado no mundo ocidental passa a ser admitida apenas a partir da segunda metade do séc. XIX. Inicialmente a sua incidência dar-se-ía tão somente nas hipóteses de responsabilidade subjetiva, ou seja, baseada na culpa, expandindo-se para uma responsabilidade civil objetiva, qual seja, amparada pela simples relação de causa e efeito entre o comportamento administrativo e o evento danoso. Ruy Barbosa em inícios do séc. XX subscreveu parecer acerca da responsabilidade civil do Estado pela culpa de seus agentes, in verbis: "...dadas, pois, assim as mesmas premissas, irresistivelmente se impõe a mesma consequência de que o Estado, pessoa jurídica, responde pelo dano dos seus prepostos ao direito individual" (apud STOCO, 2013).

A responsabilização civil do Estado é um dos maiores reflexos da consolidação do Estado de Direito, aquele que corre na contramão do Estado "Leviatã" tal como prognosticado por Thomas Hobbes. O Estado responde civilmente por suas ações e omissões e, inclusive, objetivamente, porque todos nós estamos submetidos ao Império da Lei, inclusive o Estado. A admissão de uma eventual atividade faltosa do poder soberano e a limitação deste mesmo poder pelo Direito com o consequente dano resultante de atos levados a cabo por agentes estatais (responsabilidade objetiva) ou em razão de omissão ou falha estatal, vão realizar o inafastável nexo de causalidade, imprescindível para a atribuição da responsabilidade. Como nos informa José Cretella Júnior (1980, p. 105), havendo dano e nexo causal, o Estado será responsabilizado patrimonialmente, desde que provada a relação entre o prejuízo e a pessoa jurídica pública, fonte da descompensação ocorrida.

Sobre a matéria, tratemos de um caso concreto, ainda (e sempre) sobre o gosto de fel que a hecatombe no rio Doce, ocorrida no dia 05 de novembro de 2015 no estado de Minas Gerais deixou na boca de todos nós.

Do Fato e do Direito.

O rompimento da Barragem do Fundão no município de Mariana deflagrou uma das maiores tragédias ambientais da história brasileira com um saldo, até agora, de 11 mortos, 12 desaparecidos e mais de 600 pessoas desabrigadas. Um volume de 62 milhões metros cúbicos de lama escorreram morro abaixo e estão percorrendo um trajeto de mais de 500 quilômetros até encontrarem o mar no estado do Espírito Santo. Mais de 220 cidades dos estados de Minas Gerais e do Espírito Santo foram atingidas pela catástrofe. A empresa mineradora que tem a autorização da União para desenvolver as suas atividades, a Samarco, controlada pela Vale do Rio Doce e pela australiana BHP Billiton, foi multada em R$ 1 bilhão de reais. Apesar de uma possível recuperação da bacia do rio Doce em um prazo mínimo de 10 anos, elementos tóxicos tais como o zinco e o arsênio trouxeram danos possivelmente irreversíveis ao meio ambiente, incluindo o abastecimento de água potável.

 Sabemos que os recursos minerais em todo o território nacional são BENS da UNIÃO (art. 20 da CF/88). Ou seja, a exploração desses bens precisam da autorização da mesma, assim como a atividade mineradora é gerida e fiscalizada por uma autarquia, o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), ligado ao Ministério das Minas e Energia. O DNPM tem por atribuição precípua, zelar para que a atividade seja exercida de forma racional, controlada e sustentável, tendo por princípio o seu objetivo maior, qual seja: o interesse da sociedade. Discute-se muito (e deve ser discutida, por óbvio) a responsabilidade das empresas às quais a UNIÃO concedeu o direito de exercer a atividade de mineração. Mas, causa-me espécie que tanto a sociedade quanto o sempre tão ativo Ministério Público Federal estejam tão silentes quanto ao grande Darth Vader dessa história: O Poder Público.  O DNPM, tal como prevê o Código de Mineração, tem por DEVER fiscalizar e realizar vistorias, assim como impor as sanções cabíveis em caso de infrações e desrespeito às regras de manutenção do sistema, incluindo as barragens.

Um dos principais instrumentos processuais atuais para a proteção do meio ambiente é a Ação Civil Pública. Este instrumento adentrou a ordem jurídica pátria através da Lei 7347 de 1985, tendo por escopo precípuo tutelar os direitos difusos e coletivos anunciando a sua futura tutela pela or dem constitucional a ser inaugurada em 1988. O Parquet, o Ministério Público, tão conhecido por ser o titular da Ação Penal e por agir como fiscal da lei (custus legis) passou a ser um dos legitimados para propor a Ação, passando esta a integrar uma de suas principais atribuições. Mister salientar que não apenas o Ministério Público é o titular dessa espécie de ação, havendo a legitimidade de terceiros para a sua proposição, tais como órgãos públicos e privados, incluindo Estados e Municípios, além de associações. Nos casos de matéria ambiental, através da Ação Civil Pública, não apenas se reprimem a prática de atos lesivos ao meio ambiente, mas também, repara-se o dano causado pelo agente causador.

Portanto, urge que seja imediatamente ajuizada AÇÃO CIVIL PÚBLICA pelo MPF, ou pelos estados e municípios atingidos, contra a UNIÃO, pois que a mesma tem RESPONSABILIDADE CIVIL SUBJETIVA (faute du service) quanto à matéria. Houve CULPA IN VIGILANDO! Sabemos que por maiores que sejam as indenizações das empresas que, inclusive pagam tributos à União em razão de suas atividades, os mesmos são insuficientes em relação às perdas catastróficas dos municípios e de suas populações ribeirinhas. A UNIÃO tem o dever de INDENIZAR pelo dano que  subjetivamente (omissão, falha na fiscalização) causou! Enfatizando que mesmo que a União não fosse responsabilizada subjetivamente como deve ocorrer no caso sub oculi, ela responde sempre objetivamente, ou seja, independentemente de culpa nas hipóteses de dano ambiental, em razão da assunção do risco integral na concessão de atividade, tal como a mineração, a terceiros.

Desde que no mundo se inaugurou o processo civilizatório, as civilizações nasceram às margem de um rio, quer seja a Mesopotâmia, cujo próprio nome significa entre dois rios (Tigre e Eufrates), quer seja o Egito que não teria sido o Egito sem o rio Nilo, quer seja Roma que não teria sido Roma se não fosse o Tibre. Os rios são as veias e as artérias que  levam e trazem  oxigênio  ao corpo social que em suas beiras se nutre de vida. A União deve responder por essa mácula em nossa sociedade que ainda se diz civilizada. Essa responsabilização será a margem limite entre nós e a barbárie.