terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

 UM SONHO "SON" - IVAN TURGUÊNIEV. 1877. (OU POR UMA

GENEALOGIA DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER)


De forma surpreendentemente comovedora, Ivan Turguêniev, um dos gigantes da escritura russa do séc. XIX, junto a Dostoiévski, Tolstoi, Tchekhov, Pushkin e Gogol, narra em seu conto "Son" um tema inusitado para a segunda metade do séc. XIX. Um tema de difícil abordagem ainda hoje nos alvoreceres do séc.XXI. A tradução do título original "Son" para o português foi  "Um Sonho" (provavelmente porque foi traduzida da versão em Inglês "The Dream"), o que  torna a sua narrativa ainda mais surpreendente, uma vez que sequer podemos antever o ponto nevrálgico de seu enredo.  E esse ponto nevrálgico é dolorosamente feminino: Uma bela e elegante mulher casada, feliz em seu casamento, é estuprada por um de seus cortejadores. Desse estupro nasce-lhe um filho. Que viria a ser o seu único filho...


Abaixo, um trecho desse belo conto avassalador:


"Uma noite, ficou sozinha, pela primeira vez, pois seu esposo se deixara levar para um clube por um grupo de oficiais do mesmo regimento que o homem dos olhos cruéis… Primeiro, ela decidiu esperar a volta do companheiro; depois, vendo que demorava, mandou embora sua camareira e foi se deitar… De repente, viu-se invadida por uma estranha sensação de pavor e começou a tremer pelo corpo todo. Tivera a impressão de perceber um leve barulho atrás da parede, como um cão arranhando uma porta. Virou os olhos. Uma lamparina piscava no ângulo oposto; todas as paredes eram estofadas… Subitamente, o tecido se mexeu, se ergueu, se deslocou… E o homem de olhos cruéis pareceu sair da parede, todo vestido de preto!


Ela quis gritar, mas nenhum som saiu da garganta, paralisada pelo terror. O homem saltou sobre ela, como uma fera, e jogou-lhe alguma coisa sobre a cabeça, alguma coisa sufocante, pesada, de cor branca… Que se passou em seguida? Não me lembro mais… Não me lembro mais de nada! Parecia um assassinato… Quando a névoa se dissipou e eu… e minha amiga recobrou os sentidos, não havia mais ninguém na peça. Durante muito tempo, não teve forças para gritar… Enfim, soltou um berro estridente… e tudo se anuviou de novo…

...

Minha amiga se refugiou no campo, tornou-se mãe pela primeira vez… viveu alguns anos ainda com seu marido até a sua morte. Ele nunca soube de nada. Aliás, que poderia dizer-lhe? Ela mesma ignorava tudo…


Mas eles não saborearam nunca mais a felicidade de antes: um peso inexplicável, uma tristeza sem nome assombrava sua existência… não tiveram outros filhos… e esse filho…”


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