quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

                                                  "O mais era morte e apenas morte" 

    Do Ajuizamento de Ação Penal na Argentina pelo Desaparecimento do poeta Federico García Lorca na Espanha.

                                                                                                                                   
  Andrea Almeida Campos 







A que horas fechou os olhos para o mundo o poeta andaluz? Qual granada fez escorrer os despojos de seu corpo? Onde desencavar a dor de sua morte já prevenida? O grande poeta espanhol Federico García Lorca foi cruelmente assassinado por tropas franquistas em uma madrugada do ano de 1936. Foi covardemente assaltado no aconchego de seu lar enquanto dormia, tendo sido levado por oficiais  a um terreno baldio. Ali, dispararam-lhe tiros de baioneta no ânus. Federico, além de fazer oposição ao regime do General Franco, era homossexual.

Em que local ceifaram-lhe a vida? Onde foi enterrado o seu corpo? Quem foram os seus algozes? A literatura faz ilações e tenta compreender o incompreensível, mas é ao Direito que cabe dar uma solução justa ao injusto. O Direito, esse sistema criado pelos controversos humanos para a  solução pacífica das controvérsias. Enfatiza-se muito o seu caráter pacífico, mas o sentimento de justiça, não apenas reclama pela paz, reclama por uma solução justa em face de uma violação. E quanto maior a ferida deixada por essa violação, mais protegido será o bem jurídico violado, tanto materialmente, quanto processualmente. É o que ocorre com as violações em massa do direito à vida como no holocausto, é o que ocorre nos crimes praticados contra milhares de pessoas durante regimes ditatoriais. Essas violações são tipificadas como crimes contra a humanidade e por serem as vítimas todos nós, humanos, independente de origem, etnia e credo,  por termos sido nós os violados na alma tanto quanto aquele que foi violado na carne, a esses crimes caberá a denominada "Jurisdição Universal", também chamada de "autdeereautpunire". Ou seja, a persecução penal referente aos mesmos, poderá ser iniciada em qualquer jurisdição do mundo, independentemente do local onde tenha ocorrido a ação ou o resultado do ilícito, independente do país de nacionalidade do autor ou da vítima.

Por óbvio que, nesses casos, os procedimentos processuais atingem máxima complexidade, esbarrando em óbices, muitas vezes tidos como incontornáveis para a sua consecução. Basta atentarmos para as dificuldades de produção probatória, citação e intimação dos réus, homologação da sentença estrangeira. No entanto, o que mais mobiliza o jurisdicionado e os que se debruçam sobre o tema, não é apenas os entraves para os atos processuais, facilitados por um mundo cada vez mais globalizado e interconectado, mas sim, o fato de que a Jurisdição Universal pretende se legitimar e se fazer valer perante ao princípio mais caro a todas as Nações: as suas Soberanias. Portanto, para tecer considerações acerca do tema, mormente no que tange à barbárie do que foi o assassinato do poeta andaluz, Federico García Lorca, chamo ao meu auxílio, um outro poeta, também ibérico, mas português: Luiz Vaz de Camões. É ele quem nos diz "Cesse tudo o que a antiga musa canta/ Que outro valor maior se alevanta". Municiados por Camões, sigamos.

O projeto “The Princeton Principles on Universal Jurisdiction” define a Jurisdição Universal, também denominada de "competência repressiva universal", como  “uma jurisdição baseada apenas na natureza do crime” - jurisdição esta que poderia ser utilizada pelas Cortes nacionais para processar e punir, e assim desencorajar os atos hediondos reconhecidos como crimes graves sob o direito internacional. A internacionalista Renata R. Fasano (2011) nos informa ser a Jurisdição Universal  “a possibilidade de tribunais nacionais julgarem, independentemente da existência dos vínculos tradicionais do direito penal, do princípio da territorialidade, da nacionalidade e da proteção dos indivíduos acusados do cometimento de crimes internacionais que remetem às graves violações de direitos humanos.

Mas, o que, juridicamente, poderia ser entendido por "universal"? A universalidade estaria vinculada à própria natureza dos crimes em face dos quais, qualquer Estado poderia lançar mão da prerrogativa de jurisdição universal. Logo, a jurisdição universal não se aplica a todo e qualquer crime, por mais bárbaro que este possa nos parecer, mas, tão apenas, a uma categoria específica de crimes internacionais. O interesse de exercer essa prerrogativa seria de todo e qualquer Estado que se sentisse ofendido e agredido por aquele fato criminoso que ele mesmo abomina e condena universalmente. A ampliação da competência estatal seria uma forma de ampliação, também, da proteção à comunidade internacional. Lembrando o imenso jurista italiano Piero Calamandrei (apud TOURINHO FILHO, 2011) que nos ensina que "ante a ausência de um poder supraestatal capaz de impor com a força as próprias decisões aos Estados, a extrema ratio para resolver os conflitos é a guerra". A Jurisdição Universal, no entanto, tenta resolver e sanar a ferida causada pela violação de direitos, não através de um órgão supraestatal, mas outorgando competência universal aos tribunais estatais.

Apesar de o tema não ser tão recorrente em nossa história de seres legislados, e ainda bem por isso, já que a Jurisdição Universal se aplica a tragédias e barbáries específicas, o fato é de que não há nada de muito novo sobre a terra no que se refere a ela, bastando-nos lembrarmo-nos do caso de Eichmann que foi julgado em Israel por crimes cometidos na Alemanha contra os Judeus. Claro que nesse caso, maior estranhamento jurídico não ocorre já que o Estado de Israel,  seria o Estado do povo judaico, não importando onde os integrantes desse povo teria nascido, vivido e sido vitimizado. O que consideraríamos como maior precedende para a Jurisdição Universal seria o "Caso Pinochet", ajuizado por tribunal espanhol. Vejamos, o que nos informa Leonardo Bandarra (2014):


Em 1996, o juiz espanhol Baltasar Garzón recebeu uma denúncia apresentada pela Unión Progresista de Fiscales de España contra Pinochet “por seu envolvimento no desaparecimento de cidadãos espanhóis na Argentina e no Chile, que remetiam à Operação Condor”, denúncia a qual foram agregados crimes de tortura, terrorismo e genocídio. Incorporaram-se também posteriormente ao caso, pela via do actio popullaris (ação popular) do direito espanhol outros cidadãos e entidades (como a Fundação Salvador Allende). Ademais foi confirmada, a partir do princípio da universalidade, a competência ao tribunal para julgar o caso. Dessa forma, configurou-se um caso de aplicação do conceito da jurisdição universal, dada a natureza dos crimes aos quais se acusava o então ex-chefe de Estado, ou seja, crimes de natureza jus congens. Por esses motivos, embora tenha contribuído para legitimar os procedimentos jurídicos espanhóis para o caso, a nacionalidade espanhola das vítimas não se fazia juridicamente necessária para o aceite do caso por Garzón.  Cabe salientar, ainda, que tal aplicação do conceito de jurisdição universal por um tribunal nacional para julgar crimes considerados como “graves violações” ou  contra a humanidade cometidos por um individuo estrangeiro em território também estrangeiro não foi inédito, pois, apesar da existência do precedente do caso Israel vs. Eichmann, no qual o ex-general nazista foi condenado em Israel por crimes cometidos durante o holocausto,o caso Pinochet inovou ao ter como réu um ex-chefe de Estado, que, portanto, gozaria dos privilégios de imunidade pelos atos cometidos.


Baltazar Garzón, atua, hoje, junto ao Ministério Público do Tribunal Penal Internacional e quando era juiz de instrução determinou a feitura de diligências de modo que fossem determinadas as localidades de fossas coletivas, a fim de encontrar a fossa na qual estariam os despojos de Federico García Lorca. A providência tomada por Garzón estava alicerçada no fato de o desaparecimento forçado, no direito brasileiro denominado de sequestro de pessoas, estar tipificado no rol de crimes contra a humanidade, de efeito permanente e ser, segundo a jurisprudência do Tribunal Penal Internacional, da Corte Europeia de Direitos Humanos e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, imprescritível. Garzón foi afastado de suas funções por conflito positivo de competência e o mandado não foi levado a termo. Mas eis que em agosto do ano de 2015, nós amantes da poesia e do direito fomos surpreendidos pela notícia de que uma  associação de vítimas do franquismo anunciara  que denunciaria a morte (pra nós imorredoura) de  Federico García Lorca, fuzilado nos primeiros dias da Guerra Civil Espanhola, perante a juíza argentina que investiga os crimes da ditadura franquista. Eis o comunicado:  "A Associação para a Recuperação da Memória Histórica (ARMH) apresentará uma denúncia pelo desaparecimento do poeta Federico García Lorca ante a juíza argentina Maria Servini de Cubria". Pelo comunicado, inferimos que no direito argentino há uma prática que refoge ao nosso Princípio do Juiz Natural, pois de forma alguma poderíamos ajuizar uma ação perante um juiz, previamente, determinado. Prima Facie, o que me parece é que o Juiz teria competência não apenas de Estado Juiz, mas também, de Estado Administração, exercendo o que para nós é atribuição exclusiva do Ministério público. Mas, o fato é que a juíza Servini de Cubria tem um histórico de atuação, valendo-se da Jurisdição Universal. Em 2010, a mesma abriu um inquérito (no direito brasileiro, o juiz não teria essa competência, apenas a Polícia Judiciária e o Ministério Público) em face dos crimes cometidos durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e durante a ditadura do General Francisco Franco (1939-1975). Cubria ordenou, ao final de 2013, a abertura de todos os consulados argentinos no mundo para atender as vítimas do franquismo. Em maio de 2014, como uma saudada da lei, viajou para a Espanha a fim de se encontrar com algumas vítimas que, em razão de suas idades avançadas ou estados de saúde, estariam impedidas de viajarem à Argentina. Ou seja, a juíza foi ouvir as partes interessadas in locu.

Quanto às investigações em torno do local onde estaria enterrado o poeta Federico García Lorca, várias escavações foram realizadas nas cercanias de Granada, a cidade onde morava o poeta ao sul da Espanha e onde foi cometida a barbárie. Apesar dos esforços, não foram, até hoje, encontrados os seus restos mortais.

Há alguns anos, foi descoberto um documento no qual o regime de Franco teria reconhecido o crime que cometera contra Lorca. No comunicado da Associação ainda consta: "A ARMH solicitará à juíza que exija do governo da Espanha qualquer documentação semelhante que possa indicar o paradeiro de pessoas desaparecidas e esclarecer os fatos que levaram à sua detenção ilegal e subsequente morte".

Mas o que levou as vítimas espanholas a recorrerem à Justiça Argentina? A resposta é o fato de haver sido promulgada na Espanha em 1977, a Lei da Anistia quanto às práticas da ditadura franquista. Esta Lei foi promulgada no momento de transição da ditadura para a democracia. A meu ver aqui reside o um dos grandes desafios do caso frente à Jurisdição Universal: O crime continua a ser imprescritível, mesmo quando o Estado no qual o mesmo foi cometido perdoou o agressor? Poderá esse Estado homologar sentença estrangeira de decisão que ordena a condenação de alguém por um crime já perdoado por esse Estado? No que concerne ao processo penal, mais questões nos assolam: Os prováveis algozes ainda estão vivos? Ao menos pelo direito brasileiro, pessoas jurídicas, salvo em casos de crimes ambientais, não podem responder criminalmente, portanto, na falta de um réu que fosse pessoa física viva, frustrada estaria a Ação Penal. A única possibilidade seria uma Ação Civil de Reparação de danos no qual o Estado Espanhol respondesse objetivamente, já que não poderia aduzir que ao tempo do dano, o Estado vigente era o de exceção.

O processo ainda não foi concluído. Deixemos que a jurisprudência nos conte o final dessa história. Quanto a nós, resta chorarmos, eternamente, enquanto os abutres cantam, a morte trágica do poeta e, tal qual Antígona, rogarmos que um dia, em uma hora, qualquer hora que seja, ele tenha um lugar que possa ser chamado de sua sepultura .Que seja feito o seu enterro a qualquer hora, contanto que seja feito, talvez, às cinco horas da tarde:

Às cinco horas da tarde.
Eram cinco da tarde em ponto.
Um menino trouxe o lençol branco
às cinco horas da tarde.
Um cesto de cal já prevenida
às cinco horas da tarde.
O mais era morte e apenas morte
às cinco horas da tarde.


Federico García Lorca

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