segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

 DA DOCÊNCIA COMO SACERDÓCIO

(REFLEXÕES A PARTIR DE UMA "FAKE NEWS")






Tem circulado nas redes sociais, já há alguns anos, um modelo de contrato de trabalho que seria destinado a ser celebrado entre Conselhos de Educação Escolares e Professoras em São Paulo no ano de 1923. O contrato seria um anexo (ainda não constatei a procedência dessa informação) de um artigo escrito pela pesquisadora Jane Soares de Almeida sobre as transformações da carreira docente e sobre a inserção das mulheres nessa atividade, seus desafios e suas limitações. Pude verificar que a minuta é uma tradução ipsis litteris de um modelo de minuta contratual da Associação Escolar de Ohio nos EUA do mesmo ano, assim como de um modelo de minuta contratual espanhola, também do mesmo ano. Até mesmo as datas e os valores salariais a serem pagos convergem. Como a ortografia do contrato em português  está em franco desacordo com a ortografia vigente na década de 20 do século passado, tudo leva a crer que se trata de um contrato falsiê. No entanto, ao fazer o levantamento de algumas leis acerca da atividade docente publicadas no Brasil nos séculos XVIII, XIX e inícios do século XX, assim como, ao resgatar leituras pretéritas, posso afirmar que mesmo que o contrato seja falso, o seu espírito transporta a verdade. Ou seja, trata-se de um corpo falso movido por uma alma verdadeira. Freud já dizia "o inconsciente, às vezes, mente" e, se mente, mente sobre uma verdade encoberta. Vamos fazer, então, uma arqueologia da verdade encoberta por essa "Fake News"?


Como exemplos das cláusulas constantes da minuta contratual falseada e viralizada na Internet estão as de que as professoras, para o exercício da docência, estariam terminantemente proibidas de se casarem (como pude verificar ser procedente até o século XIX), de andarem em companhia de homens, de beberem, de fumarem ou de flanarem em sorveterias, um ambiente de coqueteria por excelência em inícios do século passado. Nos textos publicados em jornais de grande circulação no Brasil, como O Globo, e alhures, sobre o conteúdo do contrato, frisa-se o caráter machista de suas cláusulas. Sem dúvida. Mas, o que me encantou nesse contrato, sim, digo que me "encantou" e não que me causou assombro ou indignação, foi verificar como, através desse contrato-ficção, podemos constatar quão a prática docente que temos vivenciado nos últimos dez séculos foi preponderantemente prescrita pela Igreja cristã durante a Idade Média, e no que concerne ao ensino superior, a partir da Baixa Idade Média.


Prática essa, portanto, que foi, inicialmente, monopolizada pelos religiosos, integrando inextricavelmente os seus sacerdócios. Ao ser a prática docente permitida a leigos, quer fosse nas escolas paroquiais, quer fosse no ensino universitário inaugurado pela Universidade de Paris cuja direção era do bispado com intervenção papal, aqueles que se dispusessem a ser professores deveriam seguir, em vários aspectos, o mesmo modus vivendi dos religiosos. O celibato e a abstinência sexual eram alguns desses aspectos. Não há como não nos lembrarmos da história do filósofo Pedro Abelardo cuja amante Heloísa, resistia a com ele casar-se, ainda que estivesse grávida. O casamento era um descrédito para um professor, maculava a sua reputação. Mesmo em sendo esse professor, um leigo, haveria o mesmo que gozar da mesma estatura moral de um clérigo cuja vida deveria ser de entrega exclusiva ao aprofundamento de seus estudos, de alcance da sabedoria e de dedicação a seu alunado.


Ser professor ou professora, portanto, a partir da Idade Média, diversamente da cultura da Idade Clássica, passou a significar o exercício de uma função própria dos clérigos e a adesão a esse sacerdócio. É notório o monopólio da atividade educacional por irmandades e congregações religiosas até finais do século XX, tendo sido o primeiro professor de cultura ocidental em solo brasileiro, o Padre José de Anchieta. Colégios de padres e colégios de freiras foram máximas referências educacionais durante séculos. Não causa espécie, portanto, que mesmo as instituições de ensino laicas, incluindo as escolas públicas, estivessem imbuídas das prescrições comportamentais ditadas pelas escolas de ensino de tradição cristã, fossem católicas ou protestantes. Esse caráter sacerdotal emprestado  ao ensino, talvez nos ajude, também, a compreender a histórica baixa remuneração da atividade docente em países como o Brasil, afinal, uma vez que integra um "sacerdócio", entende-se que o seu caráter dadivoso, traduzido por extremosa doação e  obstinado sacrifício, seja indissociável à prática do ensino.


Quanto a aquilatar o quão machista são as cláusulas constantes da minuta, sendo que muitas estavam em real acordo com os costumes daqueles tempos, o melhor seria cotejá-las com as cláusulas de um modelo de contrato a ser celebrado com os professores na mesma época. Muito provavelmente, concluiremos que as normas impostas às moças eram bem mais restritivas e limitantes do que aquelas destinadas aos rapazes, uma vez que, historicamente, temos estado agrilhoados a um modelo patriarcal onde a desigualdade de gênero é assaz eloquente. No entanto posso já adiantar que aos homens era terminantemente proibido serem professores de meninas com idade de até 14 anos. 


Logo, no que tange às cláusulas da minuta em comento e às leis e costumes dos séculos XX e anteriores, penso que a tradição de ensino fundada pelas instituições cristãs a partir da Idade Média, emprestando a esse ofício um caráter fortemente sacerdotal, é a que maior influência exerce em seus contornos e fala mais alto. Mais do que o seu incontroverso caráter "machista". Pois, lembremo-nos que o professor Pedro Abelardo, citado acima, ao haver engravidado uma aluna e casado-se com ela, agindo em total desconformidade com o que se esperava do comportamento de um professor, foi violentamente emasculado. E morreu eunuco.

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