domingo, 1 de agosto de 2021

 EM ALGUM LUGAR DO PASSADO: OU O LUGAR DO IMPOSSÍVEL NO DESEJO MASCULINO






A nossa cultura e as suas ideologizações insistem, de forma equivocada, a atrelar o desejo feminino ao amor idealizado dos contos de fadas e a ancorar o desejo masculino ao real da carne e da racionalidade. Mas, a realidade aponta para a direção contrária: mesmo atravessadas pelas fantasias do príncipe salvático e da história de amor com final feliz, principalmente, após o casamento, as mulheres "caem" no real do amor, enquanto os homens, esses sim, tendem a passar toda a vida devaneando em idealizações amorosas e fantasias eróticas sem limites, ambas alimentadas pelos apelos mágicos do impossível.
São muitos os fatores que conduzem a essa dinâmica em maior e menor grau de acordo com a história erótico-afeita de cada um, mas, o fato é que os homens estão mais capturados pelos mitos dos contos de fadas do que possa sonhar a vã filosofia.
As mulheres são retiradas do mundo do reino das fantasias em virtude de seu próprio corpo que todo mês sangra, atracando-as ao real da terra. Muitas, depois engravidam, dão à luz e nutrem a carne de sua carne com a sua própria carne. Mesmo as que nunca engravidaram, não se livraram de estarem presas ao real do corpo que para uma eventual gravidez se prepara, a cada mês. Já os homens não. Ao contrário do que se pensa, já que seriam mais ligados ao "físico", têm bem menos, o seu desejo atravessado pelo real da carne nua e crua e suas contingências. Somando-se ao biológico, os complexos freudianos não devem ser menosprezados, carregados que são pelas tintas do primeiro amor, esse, por natureza, de impossível realização: a paixão pela mãe.
O menino, então, desde a sua mais tenra idade não apenas idealiza a sua princesa como, sobretudo, idealiza a si mesmo como um intrépido e ousado herói. Um capa e espada disposto às mais atribuladas façanhas, a lutar contra os dragões mais ferozes a fim de alcançar a sua amada impossível que o espera indefesa no alto da torre de um palácio circundado por bestas-feras.
Se esse conto de fadas tende a ter menor apelo para as mulheres, atingida a idade adulta, ou depois atravessado o real da gravidez e do primeiro filho, para os homens esse mundo da fantasia, em alguma medida, é para sempre. Não é por mero machismo que lhes atraem os desafios da "conquista". É que as dificuldades à ela inerentes são o gatilho para que eles possam encarnar as suas fantasias na realidade, vestirem as suas capas de heróis, de destemidos e intrépidos conquistadores dos sete mares. Nessa aventura, mais do que a idealização da dama de difícil acesso, está a idealização do herói de si mesmo.
E esses desafios a serem vencidos pelo nosso herói romântico que têm o alto de uma torre a ser escalada como metáfora, traduzem-se em barreiras sociais, barreiras territoriais, barreiras religiosas, barreiras familiares, barreiras de estado civil (seja o dele como o da princesa) e pasmem! Barreiras do tempo. Não à toa, o conceito de "barra" é tão caro à teoria do desejo em Lacan...
Certa feita, era eu ainda estudante de direito e passeava pelo Alto da Sé, pus-me a conversar com um rapaz que estava às voltas com os seus desejos de amor impossível. Foi, quando então ele quis apresentar-me à sua amada. Mostrou-me a sua foto: ela estava morta. Mas, não estava morta há alguns meses ou até mesmo há alguns anos: Ela estava morta desde o século XIX! Antes de achar que o rapaz fosse louco ou perturbado, apenas tive a certeza de que a alma humana é como o universo: em constante expansão ilimitada. Quase chorei a saudade da morta junto a ele.
O desvario do rapaz, segundo a minha hipótese, nada mais é do que o ponto paroxístico, o ponto mais alto do desejo masculino em suas fantasias heróicas do amor impossível. E como os homens são escópicos, têm o desejo fortemente movido pelo olhar, a possibilidade de deparar-se com a fotografia de uma dama de outros tempos e por ela se apaixonar perdidamente não é conto de fadas: É uma "ameaça" constante.
Uma dessas ameaças foi concretizada e acabou por ter suas angústias resolvidas na escrita de um livro, cuja narrativa foi levada às telas dos cinemas. Passo a contar-lhes o caso. Um escritor americano de ficção, logo, um devaneador por excelência, de nome Richard Matheson, certa feita, deparou-se com uma foto da belíssima atriz, também americana, Maude Adams e logo foi tomado por uma paixão arrebatadora. Tudo seria mais um delicioso capítulo de amor apaixonado, se Maude não tivesse nascido em 1872 e falecido em 1953.
Urgindo desvencilhar-se de sua angústia amorosa e debatendo-se com a sua impossibilidade que a despeito de estimulá-lo era incontornável, o escritor escreveu um romance de seu romance amoroso. Nele, o personagem masculino de seu mesmo nome, Richard, ao deparar-se com a foto de uma bela e outrora famosa atriz em seu tempo e por ela apaixonar-se, toma por obstinada aventura, empreender uma viagem no tempo de modo a ir ao seu encontro e realizar esse amor. Essa empresa passa a ser a única razão de sua vida, perdendo o sentido, todo o resto. O livro foi publicado com o título "Somewhere in Time" e transposta a sua fábula, baseada em um amor real, para as telas, o sucesso foi garantido e atemporal.
Sucesso garantido e atemporal, sobretudo entre os homens, que se identificam com o herói romântico e com os seus impossíveis. E cujo desejo para sempre sonha acordado em ouvir sussurrar de suas camadas mais profundas, a bela de seu passado. Que a despeito dos dragões a serem vencidos, do alto da torre, maviosamente lhe dá a irresistível ordem, para ele, deliciosamente, indemissível: "Come back to me"...

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