quinta-feira, 19 de agosto de 2021

A Burca e O Fio Dental



Ofertamos a nossa imensa solidariedade às mulheres em todo e qualquer regime totalitário, especialmente às do  Afeganistão, um dos países mais perigosos do mundo para as mulheres quando sob o poder de um fundamentalismo religioso que instaura um regime patriarcal conservador ultrarradical a destilar ódio misógino. Mas o espanto na Terra Brasilis com as suas condições como se essas nos fossem totalmente estranhas, revela mais uma vez a imagem distorcida e alienada que temos de nós mesmos, nós, esse povo cordial que ocupa um  dos pináculos mundiais da violência de gênero.


Nessa Terra Brasilis em que o feminismo é apedrejado por homens e mulheres e ainda estamos em plena luta pela igualdade e autodeterminação de nossas vidas e de nossos corpos. 


Nem parece que até 2003 no Brasil, por Lei,  se o homem descobrisse que havia se casado com uma moça já "deflorada", poderia anular o casamento e "devolvê-la" ao seu pai. 


Nem parece que em 2009 na maior cidade do Brasil, uma jovem estudante de 20 anos foi vandalizada e fisicamente agredida por seus jovens colegas dentro de uma Universidade por vestir uma minissaia.


Nem parece que até a década de 60 no Brasil, por Lei, a mulher casada tinha a mesma capacidade jurídica dos índios e pródigos e só podia prestar queixa na delegacia acompanhada do marido.


Nem parece que até a década de 70, as mulheres, em sua franca maioria, chegavam no máximo aos cursos de magistério, dos quais saíam para o grande objetivo de suas vidas: casarem-se e serem mães e esposas.


Nem parece que apenas na década de 90, as mulheres casadas das classes médias e altas passaram a ocupar significativamente o mundo do trabalho, uma vez que antes disso,  às vésperas do século XXI, a justificativa de seus maridos para que elas ficassem restritas ao espaço doméstico era a de que elas "não precisavam" trabalhar. E que essa justificativa ainda hoje é corrente em muitos casamentos.


Nem parece que, também, até a recente década de 90, as mulheres aprovadas nos concursos para Juiz em Pernambuco não tomavam posse porque a menstruação afetaria os seus bons juízos nas sentenças.


Nem parece que o Brasil é o país com maior número de trabalhadoras domésticas do mundo, que um quarto das mulheres que trabalham fora de suas casas no Brasil são trabalhadoras domésticas e que nem a Constituição Cidadã de 88 equiparou o trabalho doméstico às demais categorias profissionais (a equiparação jurídica apenas aconteceu em 2015).


Nem parece que no Brasil há milhares de mulheres no campo e nas cidades que trabalham em condições análogas às dos escravos e vivem em um confinamento cujas condições materiais e familiares, certamente, são piores do que o das mulheres afegãs.


Nem parece que rotineiramente acompanhamos casos de meninas de menos de onze anos de idade que são estupradas e engravidadas por seus pais ou tios e das que sofrem estupro coletivo.


Nem parece que quando essas meninas estupradas e engravidadas vão fazer o abortamento legal, uma multidão de extremistas (que são base do atual Governo, inclusive) fazem cerco ao hospital chamando-as de assassinas e ameaçam as suas integridades físicas.


Nem parece que ainda hoje, nas barras da Justiça no Brasil, mulheres vítimas de violência sexual e doméstica são revitimizadas por advogados, juízes e promotores em plena sala de audiências.


Nem parece que o Brasil é, atualmente, o quarto país do mundo em números  absolutos de casamentos infantis de meninas, e o quinto país do mundo em número de feminicídios, onde a cada sete horas uma mulher é assassinada pelo fato de ser mulher.


Nem parece, nem parece...


Ah, mas as feministas que lutaram e ainda lutam por mudar essas situações são umas "feminazis"... Abaixo o feminismo!


O fato é que na terra do fio dental, a burca nunca deixou de estar à nossa espreita...

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