terça-feira, 29 de setembro de 2015

                                                               Delação, Traição?
                                          Apontamentos iniciais sobre a Delação Premiada
                                                                                              Andrea Campos






"Nullum processus sine accusatione", é o brocardo jurídico que rege o sistema penal acusatório fundado em Atenas e consolidado pelo monumento jurídico que foi o Direito Romano. Logo, ninguém seria levado a juízo sem uma acusação. Esta acusação era feita por particulares, mormente pelo ofendido que a fazia, oralmente, perante o magistrado. O juiz, ato contínuo, entregava à vítima um instrumento denominado de "lex". A natureza jurídica deste documento, apesar der ser a de mandado, era, de fato, um mandato. Através dele, o ofendido colhia provas, ouvia testemunhas, fazia perícias, iniciava-se o procedimento, portanto, inquisitório, uma vez instaurado o processo acusatório. O acusado era chamado a juízo, a este, também cabia a produção de provas. Ab initio, estabelecia-se o contraditório. O processo penal, portanto, desenrolava-se nos moldes do processo civil no qual as partes sustentam a linha que o conduz. Ao final, cabia ao Juiz, tão somente, votar pela condenação ou pela absolvição do acusado, sendo despiciendo, inclusive a sua motivação. Quando um terceiro não interessado fazia a acusação, este era denominado de "delator". A delação foi bastante comum não apenas no sistema penal acusatório da antiguidade, como também em sua fase preponderantemente inquisitória, durante a Idade Média, era a "delatio criminis". O fato de qualquer pessoa, no entanto, poder imputar um crime a outrem, fazendo-a responder a um processo criminal, mesmo sem provas suficientes, quando não, quaisquer provas, deu azo a uma proliferação de denunciações caluniosas, muitas com o escopo de vingança e de destruição da imagem e da reputação alheia.

Após a Revolução Francesa e o estabelecimento do Sistema Processual Penal Misto, Montesquieu comemorou a criação do Órgão do Ministério Público que, ao ser o máximo titular da Ação Penal, o "dominus litis", mitigaria os seculares danos e injustiças em decorrência das "delatios".

Nos dias que correm, muito se tem falado nas delações. Mas, não se trata da "delatio" tal como a concebia os antigos e os intermédios. A delação, também denominada de chamamento do corréu, trata-se de um fenômeno jurídico no qual um acusado, ao ser interrogado em juízo ou ouvido pela polícia, além de confessar a autoria de um fato criminoso, do mesmo modo, atribui a um terceiro a participação no crime como seu comparsa. Cumpre salientar, que a confissão do acusado é elemento essencial da delação, o que por si só refoge à "delatio" dos antigos que consistia tão somente em imputar a terceiro ato criminoso. Portanto, antes de imputar fato criminoso a terceiro, mister que se produza a "probatio probantissima": a confissão do delator. Uma vez que o delator negue a autoria delitiva, cingindo-se a imputá-la a terceiro, tal ato será vazio de valor probatório.

Em 1995 foi positivada, inicialmente, a denominada "delação premiada" na revogada Lei 9034. Atualmente, o instituto o é regido pela Lei 12.850/2013. A delação premiada, também denominada de colaboração premiada ainda está incipientemente positivada e tratada pela doutrina. Sendo que os dispositivos legais que regem a matéria ainda não oferecem detalhes sobre o seu procedimento. Grosso modo, a delação premiada diz respeito a um acordo efetuado entre o Ministério Público e o investigado ou réu. Nesse acordo não participa o juiz que poderia ter afetado o seu livre convencimento, mas sendo a ele levado o acordo para a sua apreciação e aplicação, ou não, do benefício adequado à extensão da colaboração e à sua utilidade. No que tange á sua forma e ao seu conteúdo, a delação premiada não se efetiva em um único ato isolado, mas consiste em um conjunto de atos, configurando-se em um verdadeiro incidente probatório. Dentre esses atos estão, tal como nos ensina Badaró (2014, p. 318): a própria declaração do delator; a entrega de documentos ou coisas em seu poder; a confirmação judicial das declarações extrajudiciais, eventual análise de documentos e outras provas ligados aos fatos; o compromisso de pagar a multa penal e, até mesmo, em casos específicos, a renúncia ao direito de recorrer. Os processualistas, no entanto, se ressentem por ter deixado o legislador várias questões relacionadas com a delação premiada sem disciplina legal. A natureza jurídica de prova testemunhal anômala é plenamente refutada, prevalecendo a de instrumento probatório específico.

No que se refere ao direito material, os seus efeitos se dão quanto à pena que poderá prever a extinção da punibilidade, por vezes, dar início ao cumprimento de pena em regime aberto, ou apenas levar à redução da pena (o que não é pouco). Cumpre a tudo isso somar-se a possibilidade de aplicação de pena restritiva de direito em lugar da pena privativa de liberdade em casos específicos. Não nos esquecendo que, em nosso país, o Brasil, a delação premiada é utilizada, tão somente, em casos de crime organizado.

Diante de um conhecido processo que envolve a promiscuidade entre os poderes públicos e as instituições privadas, ora em trâmite na Justiça Brasileira, e acompanhado por toda a população, muito se tem falado sobre uma eventual natureza antiética do instituto que seria fundado em uma reprovável "ética utilitarista" na expressão cunhada por Fausto de Sanctis, que incentivaria a prática de "traições". Vestibularmente, adentraríamos aqui, questões etimológicas e filosóficas: Quais são os pressupostos para que ocorra a traição? A traição é uma quebra de confiança que exsurge com o descumprimento de um pacto feito por pessoas de boa-fé para práticas lícitas, quer jurídicas ou não. A boa-fé das partes e a licitude de seu objeto seriam, então seus pressupostos inafastáveis. Ocorre a traição, a quebra não pouco dolorosa da fidúcia entre amigos, entre amantes, entre colegas de trabalho, entre negociantes. E entre comparsas, é possível, então que se dê a traição? Entre pessoas de má-fé, que se associam a fim de delinquir, de  levar a cabo as suas sanhas criminosas, de cometerem o ilícito?

Vencido o escrutínio ético que legitima o instituto, acrescentaríamos ser a delação premiada um instituto que vem conferindo novas cores ao processo penal brasileiro, ao direito penal brasileiro. Sabe-se que, originariamente, o direito penal integrava no Corpus Juris Civilis Romano o capítulo do direito das obrigações e somo supra expusemos os seus procedimentos eram de natureza, claramente, civilista. Muito se tem comentado que a delação premiada tem dotado o processo penal com características do Common Law, do direito anglo-saxão. Essas características são as da celeridade e da franca negociação que passa a integrar o processo penal, cujo gérmen (a transação penal) está na Lei 9099/1995 (Lei do Juizados Especiais). A delação premiada demanda grande capacidade de negociação entre as partes processuais, reduz os esforços da investigação e sepulta instrumentos investigatórios obsoletos. Foi publicado em um domingo,  dia 27 de setembro de 2015, um muito bom artigo no Jornal "Folha de São Paulo" de autoria de Estelita Carazzai no qual a jornalista afirma que a Lei da Delação aproxima direito brasileiro de cultura jurídica dos EUA, ou seja, nós os sectários romanistas, filhos do direito continental, do direito civil romano, estaríamos, agora, recebendo a benfazeja influência do dinâmico Commmon Law, do direito insular. Gostei muito do artigo e não julgo falsa a sua assertiva. O que apenas eu gostaria de dizer é que o Direito Penal Inglês e Americano, nada mais é do que o direito penal romano em suas origens, o direito com amplo contraditório e autonomia da vontade das partes, o direito processual penal imiscuído das possibilidades de acordo e transações do processo civil e penal romanos. A Inglaterra, adotou o antigo sistema acusatório romano, seguido por países de anglófilos como os EUA e não o largaram jamais. Nós fomos que o largamos e construímos um novo processo penal a despeito do romano. Ou seja, sem negar que essa é a cultura jurídica americana, a das negociações, o fato é que a sua origem está no Lácio. E em matéria de Direito, incluído nela a da delação premiada, não há como fugir: todos os caminhos levam a Roma.


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