quinta-feira, 24 de setembro de 2015

                                "Só o que tenho a confessar é a minha dor"
                                  Da Confissão como a Rainha das Provas

                                                                                         Andrea Campos


No Sistema Processual Penal Inquisitorial, cujos gérmens estão em Roma, mas foi plenamente implementado durante a Idade Média em contraposição ao sistema antecessor, o antigo sistema acusatório, a confissão se consolidou na  categoria de “rainha das provas”. 

Sendo vigente o direito canônico, entendia a Igreja ser a confissão obra do “espírito santo” que por sua interseção na alma do réu, faria brotar de sua boca a veríssima verdade. E o melhor caminho em direção à vera verdade, à palavra em som transbordada, seria, naturalmente, o caminho da dor. A dor dos iníquos, a dor dos ímpios. A dor infligida pelas raias da tortura. A dor coagulada na memória do sangue. A dor em carne desfibrilada. A dor, nódoa do tempo tatuando o silêncio. A dor calda fervente na pele dos endiabrados. A dor consumida em imagens esfaceladas no espelho. A dor degenerada, esquartejando o momento infindo. A dor retesada ao limite da existência pouca. A dor, corda rota da cítera silenciada. Digo o que queiras para me salvar da dor! O que queres que eu diga?

E já que o caminho rumo à verdade seria o da dor a fecundar, pelo espírito santo, a alma do réu, dando-se à luz, a verdade, liberto estaria o algoz torturador da culpa pela prática do máximo  mal, já que o seu máximo mal era a via própria para o máximo bem. E já que podemos narrar o medonho através do  belo, escolho um trecho da obra-prima do escritor italiano Umberto Eco (1983, p.433), “O Nome da Rosa”, para ilustrar o que, até agora, dissemos:

“Agora só eu sei o que deverá ser feito”, disse Bernardo com um sorriso tremendo. “Tu não deves senão confessar. E estarás danado e condenado se confessares, e estarás danado e condenado se não confessares, porque serás punido como perjuro! Então confessa, ao menos para abreviar este dolorosíssimo interrogatório, que perturba nossas consciências e o nosso senso de brandura e de compaixão!”
         “Mas o que devo confessar?”

O que seria confessado, bem mais do que a verdade, atenderia ao desejo dos torturadores: Toma a verdade que queres e que pela minha dor me pedes.

Apesar de expurgada de todo e qualquer sistema legal democrático, sabemos que ainda há, sim, a prática da tortura, mas, por óbvio, não legitimada, assim como a confissão há muito deixou de ser a rainha das provas para ser entendida pelo legislador pátrio brasileiro no atual Código de Processo Penal, como, tão somente, uma prova não conclusiva em meio a outras provas cujo valor maior, atualmente, é conferido à prova pericial.

Vejamos como o nosso ordenamento positiva a prova de confissão no Código de Processo Penal vigente, IN VERBIS:

                                                CAPÍTULO IV

                                                 DA CONFISSÃO

        Art. 197.  O valor da confissão se aferirá pelos critérios adotados para os outros elementos de prova, e para a sua apreciação o juiz deverá confrontá-la com as demais provas do processo, verificando se entre ela e estas existe compatibilidade ou concordância.

        Art. 198.  O silêncio do acusado não importará confissão, mas poderá constituir elemento para a formação do convencimento do juiz.

        Art. 199.  A confissão, quando feita fora do interrogatório, será tomada por termo nos autos, observado o disposto no art. 195.

        Art. 200.  A confissão será divisível e retratável, sem prejuízo do livre convencimento do juiz, fundado no exame das provas em conjunto.

No que tange à tortura, não um método divino de persecução da verdade, mas sim, um crime, o mesmo é tratado na Magna Carta e regido por Lei Especial, IN VERBIS:

                  Constituição da República Federativa Do Brasil
(...)
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;
...
XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;

Quanto à regência de Lei Especial sobre o crime de tortura, esta é a de no. 9455 de 1997. Aqui o artigo que traz o conceito do tipo penal, IN VERBIS:

Art. 1º Constitui crime de tortura:

I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:

a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;

b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;

c) em razão de discriminação racial ou religiosa;

II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.

Pena - reclusão, de dois a oito anos.


O Brasil também é signatário de várias Convenções Internacionais que vedam a prática de tortura, mormente no que tange à extração de confissão criminosa.


No mais, somos todos, todos pecadores e confessamos, diariamente, “por minha culpa, por minha máxima culpa”. Que culpa queres que eu tenha?



2 comentários:

  1. Quanto tempo a humanidade esteve sujeita ao máximo controle dos mais fortes, ou daqueles que detiveram o juízo, com base na força bruta, na religião dominante, ou no curso das estrelas. A Inquisição foi mais um instrumento de controle social, usando o terror. Pobre humanidade.

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  2. Caro Danilo, grata por suas sensíveis e oportunas palavras.

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