terça-feira, 5 de maio de 2015

“Quod non est in actis non est in mundo” - Das Regras de Experiência Comum


Andrea Almeida Campos. Advogada e Professora de Direito Civil na 
Universidade Católica de Pernambuco.



“Quod non est in actis non est in mundo”, o que não está no Processo não está no mundo, nos ensina o brocardo latino que empresta segurança às relações processuais e à aplicação do Direito, mitigando a possibilidade de decisões arbitrárias e formatando a discricionariedade judicial aos limites do processo.  O juiz não pode se negar a julgar (non liquet), tendo o dever de dar uma resposta jurídica às demandas trazidas pelos seus jurisdicionados, estando essa sob o império da lei. Mas, e quando não houver lei a ser aplicada ao caso concreto ou quando as provas são indiciárias, mas não conclusivas? Em vários países ocidentais, a solução tem sido a aplicação das denominadas “regras de experiênia comum”.  Regras, que entendemos, devam ser deixadas a látego diante da insuficiência de provas produzidas, sob prejuízo de termos feridos a ferro e faca os princípios da dignidade humana e do devido processo legal. Senão, vejamos. Inferimos que o ainda vigente Código de Processo Civil Brasileiro em seu art. 335 adota o sistema da livre apreciação de provas, preconizando que as leis da razão e da experiência devam ser observadas, IN VERBIS:

Art. 335 Em falta de normas jurídicas particulares, o juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do  que ordinariamente acontece e ainda as regras da experiência técnica, ressalvado quanto a esta, o exame pericial.

Ainda sobre a apreciação das regras de experiência comum, mormente no que tange à produção de provas, podemos observar a liberdade do juiz quanto a essa observância e o endosso que lhe empresta a lei quanto aos seus poderes instrutórios na condução do procedimento probatório e na apreciação da prova no art. 852-D, do mesmo diploma legal sub oculi, também IN VERBIS:

Art. 852-D. O juiz dirigirá o processo com liberdade para determinar as provas a serem produzidas, considerado o ônus probatório de cada litigante, podendo limitar ou excluir as que considerar excessivas, impertinentes ou protelatórias, bem como para apreciá-las e dar especial valor as regras de experiência comum ou técnica. (Grifo nosso)

E o que a teoria jurídica compreende por regras de experiência comum? Consultemos o jurista Friedrick Stein em seu “El Conocimiento privado del juez” :

Son definiciones o juicios hipotéticos de contenido general, desligados de los hechos concretos que se juzgam en el proceso, procedentes de la experiencia, pero independientes de los casos particulares de cuya observación se han inducido y que, por encima de esos caso, pretendem tener validez para otros nuevos (Stein, 1990).

As regras de experiência comum, portanto, integrariam o Princípio de Persuasão Racional que engendra axiomaticamente o sistema jurídico quanto à apreciação de provas. O problema que forjamos é:  A que racionalidade se referem as regras da experiência comum e em que consiste esta racionalidade? O racional, em tela, seria a observação das experiências reiteradas como determinantes de decisões pré-concebidas diante do não esgotamento da produção probatória? O racional seriam os cálculos matemáticos de probabilidades, afetando a realidade humana, e mais ainda, a produção da verdade? Até que ponto podemos vincular a produção da verdade às contingências reiteradas no tempo e no espaço? Mais ainda, vincular a produção da verdade à experiência reiterada em prejuízo da experiência singularizada quando o que se está em jogo nesse jogo é a liberdade e a dignidade humanas? Tomo emprestado o exemplo que integra as ilações do Professor processualista e Juiz Federal Eduardo Costa sobre o assunto: “Um barco parte do norte da África e atravessa o Mediterrâneo rumo ao mar territorial espanhol, nele viaja um homem em torno dos 30 anos de idade e de etnia árabe que desembarca num porto conhecido por receber traficantes de drogas provenientes da mesma região na qual embarcou o viajante. Esses traficantes, já condenados pelo crime de tráfico, são, em sua maioria, árabes e têm em torno de 30 anos. O viajante é interceptado, mas com ele não se encontra a droga na quantidade necessária para caracterizar-se o crime de tráfico. Havia com ele tão somente uma mínima quantidade de haxixe para o que ele disse ser destinado a  “consumo próprio”. Inicia-se a persecução penal. O juiz “racionalmente”, baseado nas “regras de experiência comum”, deduz que o réu deva ter jogada a droga às águas mediterrâneas durante a travessia. O viajante, já preso,  é sentenciado e condenado por tráfico de entorpecentes...”. Estando sob a esfera da processualística civil, poderíamos inferir baseados em regras de experiência comum, que um determinado devedor fraudou os seu credores e condená-lo pela fraude porque assim fizeram de forma contumaz os seus sócios, ou até mesmo porque este devedor já praticou  fraude similar em algum outro momento de sua vida empresarial? Dadas as condenações pré-faladas, podemos dizer que houve “racionalidade” nessas decisões? Até que ponto as “regras de experiência comum” podem fundamentar decisões judiciais?

Quanto à utilização das regras de experiência, justifica-as  Cardoso (2001):

O saber concreto do juiz tanto o que repousa em sua cultura geral como um saber especializado é aproveitável no processo porque uma recepção (admissão) de prova não tem sentido se o juiz já possui os conhecimentos que pretende adquirir. De qualquer sorte, tanto o saber geral derivado do fato notório como o saber privado do juiz (máximas de experiência) devem ser explicitados quanto a sua origem, a partir do dever de ofício de fundamentar as decisões. A licitude da utilização das máximas de experiência é complementada e justificada pela fundamentação da decisão. Tal fundamentação autoriza a não recepção formal da prova desnecessária e indica a verossimilitude ou não dos fatos que embasarão a decisão.


As máximas de experiência, portanto, teriam impacto fenomenológico no que concerne aos juízos de verossimilhança. Para julgar se um fato é verossímel ou inverossímel o julgador recorre a um critério mediante o qual se pode averiguar se o fato narrado pode ser visto como em circunstâncias similares, ou seja, da forma que normalmente acontece (quod plerumque accidit) (CARDOSO, 2001).  A redução de uma realidade a uma normalidade seria, então, o apanágio da aplicação das regras de experiência comum ao caso concreto. Pior, a redução de uma realidade a um critério de “razoabilidade” conduzindo a um efeito perverso paroxístico: a decisão injusta.

Não estamos aqui pretendendo aniquilar as máximas de experiência tão difundidas em doutrinas alienígenas tais como a  alemã, muito menos pretendendo mitigar o poder instrutório dos juízes. Mas, sim, pretendendo asseverar o dever constitucional de fundamentação dos juízos quanto aos seus julgados, fundamentação esta que deve ter por primazia a ética no caminho que leva ao alcance da verdade em detrimento do especial valor conferido às regras de experiência comum. Concluir em um processo judicial que a parte praticou ilícitos civis ou penais, porque assim é como “normalmente” se pratica em uma dada circunstância, é um juízo primário, pobre, leniente e porque não dizer, cruel.

Se Pontes de Miranda nos ensina que o Direito não é a Lei, assim como o Mapa-Múndi não é o Planeta Terra, acrescentamos que até se suporta reduzir o Direito à Lei,  mas reduzir o humano ao condicionamento animal próprio dos cupins, é insuportável.

BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A. Curso de Processo Civil. Vol. I, Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991.
CALAMANDREI, Piero. Direito Processual Civil. Vol. 3, Campinas: Bookseller, 1999.
CARDOSO, L. “Poderes Instrutórios do Juiz: As Máximas de Experiência” in Revista Justiça do Trabalho, no. 205, Porto Alegre: HS Editora, 2001.
PISTOLESE, Roberto Gennaro. La prova civile per presunzioni. Padova: CEDAM, 1935.
RECASENS SICHES, Luis. Nueva filosofia de la interpretación del derecho. Cidade do  México: Editorial Porrúa,  S.A., 1973.
STEIN, Friedrich. El conocimiento privado del juez. Madrid: Editorial Centro de Estudios Ramón Areces, S.A., 1990.
WALTER, Gerhard. Libre apreciación de la prueba. Trad. Tomás Banzhaf. Bogotá: Editorial Temis Libreria, 1985.








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